A guerra tem endereço
Por Nathália da Silva*
Moro na cidade do Rio de Janeiro há cinco anos. Nascida e criada na Baixada Fluminense, nunca convivi com ações policiais e confrontos armados, apenas ouvia falar das grandes operações do Rio, dos banhos de sangue, das casas invadidas. Na minha realidade, tudo isso parecia muito distante. Até eu me mudar para a Zona Norte, em um bairro vizinho ao Complexo do Alemão. De um local minimamente seguro, ouvi de longe os ecos de uma guerra vizinha.
Na madrugada do dia 28, acordei com o barulho das rajadas de tiro. Imaginei tudo: um assalto em algum ponto do bairro ou talvez um conflito entre os varejistas no morro mais próximo. Era cedo demais para pensar em operação policial. Mas, infelizmente, a brutalidade do Estado não tem hora para acontecer. Dependendo da área de conflito, sequer ouço o som dos disparos. E assim foi ao longo do dia. Mas as péssimas notícias não paravam de chegar. Grupos de WhatsApp com amigos do CPX atualizando sobre o agravamento da situação, uma cobertura jornalística tendenciosa sobre a atuação da polícia e o número de vítimas que não parava de aumentar.
Num piscar de olhos, tornou-se a maior chacina do Brasil. No total, 121 pessoas foram mortas, sendo quatro agentes policiais. Mais de 70 desses corpos foram encontrados na área de mata do Complexo da Penha. O Estado torturou, executou e abandonou por lá. Coube às mães, irmãs, esposas e lideranças comunitárias mobilizarem-se para dar dignidade às vítimas. Mais de três décadas após a imagem dos corpos enfileirados em Vigário Geral, e das promessas de que nunca mais veríamos cenas como aquela, tudo se repetiu. São os reflexos de um Estado que se empenha em violentar a favela, em subverter a narrativa que trata todos os mortos como suspeitos e normaliza a presença brutal das polícias nos territórios.
À imprensa, o governador Cláudio Castro chama o massacre de operação de sucesso e diz que se preciso for, excederá ainda mais as forças na “guerra às drogas”. As três maiores chacinas do Rio de Janeiro são assinadas por sua gestão. O discurso de libertar a favela matando mais de 120 pessoas não cabe. Não há heróis em um cenário como este. Os agentes mortos também são vítimas desse sistema. Opressão não é sinônimo de liberdade.
Nos últimos dois anos, a Rede de Observatórios registrou 191 chacinas no Rio de Janeiro. No mesmo período, é possível observar uma mudança nas dinâmicas de policiamento. O Rio diminui o número de operações com menor efetivo policial e aumenta as megaoperações, com mais agentes envolvidos, que resultam em mais mortes.
Era inacreditável pensar que as notícias na TV aconteciam do meu lado. O CPX que eu conheço não tem essa quantidade de terror e sangue. O que há é educação antirracista promovida por lideranças como Tia Bete e Tia Lúcia, assim como a comunicação de qualidade produzida pelo Voz das Comunidades, e o incentivo à arte e à cultura por meio da Roda Cultural da ZN, suspensa por conta da violência.
A primeira vez que pisei no Complexo da Penha foi para conhecer a DABG, uma jovem artista visual que retrata o cotidiano da Vila do Cruzeiro com olhar de quem é cria e não aguenta mais ver a favela sem cor. Foi ela quem organizou o primeiro mutirão de grafite feito só por mulheres no território e hoje é uma voz indignada, que tenta por meio da arte organizar a voz da favela para por fim ao genocídio de Estado.
E essa mesma organização já mobiliza articulações do movimento de mães de vítimas, que estão acolhendo familiares; ações da Defensoria Pública; e a movimentação de organizações da sociedade civil, que seguem defendendo o direito das favelas à humanidade e não à criminalização.
Estamos cansados de ter o sono e os sonhos interrompidos.
*Nathália da Silva é jornalista e assistente de comunicação na Rede de Observatórios da Segurança