Cortina de fumaça à moda brasileira
Por Wellerson Soares*
Verdade seja dita, é sobre desinformação e alienação a cortina de fumaça criada em torno do Projeto de Lei conhecido por “Lei Anti-Oruam”. A política brasileira tem se tornado especialista em usar esse artifício para desviar a atenção de contextos se desenvolvendo de forma negativa ou controversa. Tento aqui fazer com que tiremos por alguns minutos a cabeça fora d’água para ver pontos importantes que merecem maior atenção, emprego de energia e recursos públicos.
Dia sim, e dia também somos inundados por notícias e afetados no cotidiano pelos reflexos da violência. No Rio de Janeiro, somente em fevereiro deste ano, a principal via expressa do estado foi interditada, em média, uma vez a cada quatro dias por operações policiais. Na Bahia, em pouco mais de duas semanas, 50 pessoas foram mortas em ações de policiamento. Em São Paulo, um jovem estar livremente na porta de casa foi considerado um risco à sociedade, e por isso foi espancado pela PM, que definiu como “atitude suspeita” o fato de um menino negro estar usando “blusa de frio em uma noite quente”.
A cortina de fumaça da Lei Anti-Oruam — que impede a contratação de artistas e eventos ligados principalmente ao funk com recursos públicos sob a justificativa de conteúdo que promove apologia ao crime organizado e ao uso de drogas — possibilita mascarar que há 25 anos o número de pessoas encarceradas quadruplicou no Brasil. Em 2024, a população carcerária superou 850 mil presos, a terceira maior do mundo, sendo quase 70% composta por pessoas negras. E esse encarceramento tão expressivo tem como uma das principais bases a guerra às drogas, que desde 2006, com a Lei de Drogas, despenalizou o usuário, mas aumentou as penas para tráfico. A intenção, aparentemente, é não parar por aí. Forças favoráveis à PEC 45, que propõe inserir na Constituição Federal a proibição do consumo de drogas, atuam pela aprovação da proposta, principalmente após a descriminalização do porte de maconha até 40g por parte do STF.
A tática de desinformação quer esconder que, desde 2016, foram 708 crianças e adolescentes baleados na Região Metropolitana do Rio, nos fazer acreditar que as polícias estão impossibilitadas de trabalhar devido à ADPF 635, e mais ainda, mascarar o fato da violência contra mulheres aumentar a cada ano, como mostrou o Elas Vivem.
O fato de parlamentares de várias cidades do país estarem apresentando propostas similares à originada em São Paulo pela vereadora do União Brasil, Amanda Vettorazzo, demonstra que estão alinhados no esvaziamento da atuação política no que se refere à segurança, à cultura e à sociedade. Sem nenhum pudor, apresentam projetos e iniciativas desleais, irrelevantes e violentas, em claro sinal de ataque aos direitos humanos. Intitular a iniciativa como a “maior guerra contra o crime organizado” beira o delírio de grandeza de quem desconhece o cargo que ocupa.
Por mais que este texto enfatize a segurança pública, há de se ressaltar novamente, como citado no parágrafo anterior, que o método é também um ataque preconceituoso à cultura popular do funk, criminalizada desde o surgimento, e racista a uma parcela da sociedade — majoritariamente composta por pretos, pobres, favelados. O fato de Oruam ser filho de Marcinho VP, uma liderança antiga do Comando Vermelho preso há 29 anos em regime disciplinar diferenciado, é uma desculpa covarde para criminalizar o ritmo de origem fincada nas favelas. Tudo está conectado. Não por acaso, a Chacina de Paraisópolis ilustra bem a relação opressora e discriminatória do Estado contra a cultura favelada. Há quase seis anos, nove jovens que saíram para se divertir foram executados pela polícia em um baile funk na Zona Sul de São Paulo.
Nem precisamos ir tão longe no tempo. Na madrugada de ontem (31), dois adolescentes de 15 e 16 anos foram baleados em um baile funk na Cidade de Deus, Zona Oeste do Rio, durante uma operação policial. Mesmo com a insistência do Governador Cláudio Castro e das forças policiais de que a ADPF prejudica a ação dos agentes, eles seguem atuando e aumentando a letalidade, além de deixar evidente sua característica racista contra o povo preto, como mostrou o relatório Pele Alvo: mortes que revelam um padrão. Segundo o documento, foram 4.025 pessoas mortas decorrentes de intervenção do Estado, das quais 2.782 eram negras. De acordo com o Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ), de junho de 2020 a janeiro de 2025, as policiais Civil e Militar do Rio de Janeiro comunicaram a realização de 4.600 operações em comunidades do estado, uma média de três operações por dia.
Até a publicação deste texto, os problemas da segurança pública, os ataques a pretos e favelados, as violências contra mulheres, entre outros eventos violentos terão sido atualizados. A intenção de nos vendar os olhos e fazer com que não olhemos para o que realmente importa segue com força total no âmbito político. Por isso as inúmeras cortinas de fumaça. Hoje é Lei Anti-Oruam, amanhã criarão outro problema. Como diz aquela do Emicida: “Eles querem que alguém que vem de onde nóiz vem seja mais humilde, baixe a cabeça, nunca revide, finja que esqueceu a coisa toda…”
Wellerson Soares é coordenador de comunicação na Rede de Observatórios da Segurança.*