Quem controla as polícias?
Por Wellerson Soares*
Me dê alguns minutos da sua atenção para um exercício lógico. Imagine que você é o espectador de duas cenas que vou narrar agora, acontecendo paralelamente. É dia no Rio de Janeiro e a polícia é acionada para conter uma revolta na Rua dos Bobos, próximo ao número zero. Uma rua conhecida popularmente também como “Rua das Índias”, em alusão ao contexto urbanístico de favelas e casarões de luxo que caracteriza as cidades indianas de Mumbai e Nova Delhi.
Na Rua dos Bobos, de um lado está a mansão de um destacado homem, chamado Roberto Jefferson, político de carreira, bem-apessoado, boa oratória; e do outro, uma favela precarizada pela ausência estatal, onde vivem Joãos, Marias, Joanas e o Marlon Brendon, que luta para ser um reconhecido funkeiro com suas letras humildes.
Ao chegar ao local, os agentes foram surpreendidos por dois sons destacados: as rajadas de um fuzil e as palavras que ecoavam de um protesto ensurdecedor e eloquente. Eram Roberto Jefferson e Marlon Brendon, respectivamente, cada um de seu lado, apresentando-se ao mundo com os instrumentos que tinham à mão. Da varanda de casa, o político acertou uma policial no rosto e outro recebeu estilhaços de granada na cabeça. Da pracinha da rua, Marlon, ou MC Poze, como gostava de ser chamado, emitia um discurso lírico, ritmado, chamando atenção à realidade imposta pelo Estado aos Joãos, às Marias e a si. Suas palavras soavam como os punhos de um pugilista profissional, desferindo golpes certeiros.
Diante do cenário, a polícia então resolve agir. Com todo o aparato policial, drones, truculência e uso de força excessiva, afinal de contas ele “oferece resistência” e é “potencialmente perigoso”, eles definem. Com o outro, a gente espera, conversa, atenua a situação e conduz pacificamente, já que não representa perigo. Quem você diria que foi levado de maneira truculenta e quem foi conduzido pacificamente?
A cena tem elementos ficcionais, mas os personagens são reais e viveram abordagens distintas da polícia, expondo mais uma vez os protegidos pelo Estado e os alvos da violência. Em 2022, Roberto Jefferson, homem branco, ex-parlamentar, resistiu à prisão disparando 50 tiros de fuzil e lançando três granadas contra agentes da Polícia Federal, ferindo dois. Ele foi levado à delegacia após os agentes passarem oito horas parados em frente à sua casa esperando que se rendesse. A condução se deu com diálogo, sem algemas, pacificamente, e com risadas. Pareciam, de certa forma, orgulhosos com tamanha ousadia de um senhor de 69 anos à época. E mesmo com o atentado aos policiais, teve prisão domiciliar humanitária decretada pelo STF.
O MC Poze do Rodo, homem jovem, negro e favelado, em casa com a família, sem resistir ou oferecer qualquer perigo, teve a casa invadida, recebeu violência e uma abordagem desproporcional. Foi levado algemado, descalço e com a cabeça forçada para baixo, como era feito com pessoas escravizadas séculos antes no Brasil. Tudo diante dos olhos da mulher e dos filhos de 2, 3 e 5 anos.
Para o sistema de justiça brasileiro e seus capitães do mato, o crime tem cor e pele preta. Há não muito tempo escrevi aqui sobre a Lei Anti-Oruam e os projetos políticos que miram os canhões em alvos sem qualquer representatividade no contexto de violência, com operações midiáticas, aproveitando-se muito bem do contexto atual em que veículos de comunicação atuam como assessorias policiais. Não por acaso, agentes e jornalistas chegaram juntos à residência do cantor.
O que se viu da cobertura ao longo dos dias em que esteve preso foi o ápice da encruzilhada em que estamos quando observamos a realidade pelo enquadramento das lentes dos grandes veículos de imprensa. Os critérios de noticiabilidade, que deveriam estabelecer prioridades nas informações no jornalismo profissional, foram deixados de lado no contexto de plataformização da comunicação, da violência e da segurança. Hoje, likes, visualizações e engajamento orientam as funções da mídia, do Estado e dos policiais.
Com a conivência das instituições públicas, policiais tornaram-se influenciadores e têm feito de apreensões, abordagens e até mesmo de prisões um verdadeiro show, com vídeos que trazem tom heroico às ações. Por trás das câmeras, o desrespeito aos limites éticos da atuação. A segurança fica em segundo plano. A frente dela, os interesses individuais, políticos e financeiros. Na Bahia, 57 policiais são investigados por má conduta nas redes sociais. As punições vêm do entendimento de que não é correto se promover usando a corporação.
Existem figuras que, devido à popularidade conquistada por meio das redes sociais, conquistaram espaço na política. Casos do Delegado da Cunha, hoje deputado federal, e o ex-vereador e ex-PM Gabriel Monteiro. Essa exibição voluntária chama atenção quando consideramos a rejeição às câmeras corporais. Em São Paulo, por exemplo, PMs deixaram de acionar a gravação em metade das ocorrências em 2024. No entanto, o YouTube da corporação é repleto de vídeos de abordagens violentas gravados por bodycams. Ou seja, o dispositivo só é utilizado quando convém.
Em meio a tudo isso, a favela mostrou sua potência, superou a espetacularização, as narrativas hegemônicas, a guerra às drogas e a criminalização do preto, pobre e funkeiro e foi para a porta do presídio de Bangu 3 receber Poze de braços abertos. Nem mesmo a brutalidade policial, o spray de pimenta e as balas de borracha com que foi recebida desarticularam o grito da maioria oprimida por um sistema racista. Felizmente, neste caso, não houve fatalidades.
O mesmo não pode ser dito da desastrosa incursão do Bope, dias depois, no Morro Santo Amaro, zona sul do Rio. O Batalhão de Operações Especiais da PM seguiu a risca “entrar pela favela e deixar corpo no chão”. Os corpos ao chão eram crianças, pais, mães e amigos reunidos para brincar uma festa junina. Foram cinco feridos e Herus Guimarães, de 24 anos, morto. Mais uma morte que revela o padrão da política de segurança: se é jovem, preto e favelado é cadeia ou cemitério. Poze foi preso, Herus, morto. Quem manda prender ou matar? Quem autoriza ações violentas às favelas e periferias pelo país? Quem controla essas polícias que cada vez mais parecem descontroladas e independentes? Por que a resposta para “combater o crime” é mais armas nas ruas, agora com as guardas municipais? E por que querem nos calar?
É o que queremos saber!
Wellerson Soares é coordenador de comunicação da Rede de Observatórios.*