Se correr, te matam, se você se render, também te matam
Por Wellerson Soares*
O mundo acompanhou o Mundial de Clubes e viu, pelo menos no Brasil, uma máxima surgir e ser discutida amplamente: “Não existe erro zero no futebol, é uma utopia. O que pode haver, dentro do planeta bola, é tentar se aproximar ao máximo do tal erro zero”. A afirmação me levou a pensar se existe essa possibilidade fora do ecossistema futebol. Existe, por exemplo, erro zero na segurança pública?
Minha intenção aqui não é responder precisamente a essa pergunta, porque não teria uma resposta exata, mas pensar se estamos mais próximos do erro zero, se as instituições de segurança tem por objetivo o erro zero e o perseguem, a fim de reduzir a sensação de insegurança e que a pauta deixe de ser a principal preocupação entre os brasileiros. Vamos a alguns fatos.
Que nunca houve controle da prática policial em qualquer parte do Brasil nós sabemos, mas em alguns estados as polícias têm tanta autonomia, autorizada nos discursos de governadores e secretários – do “Não tô nem aí”, de Tarcísio de Freitas, ao “Atirar na cabecinha”, de Wilson Witzel –, que parecem ser instituições independentes. E como resultado do descontrole, a certeza do PM Fábio Anderson Pereira de estar certo ao empunhar sua arma num dia de folga, em via pública, em horário de grande movimento, e matar Guilherme Dias dos Santos Ferreira, 26 anos, que saía do trabalho e corria ao ônibus na esperança de chegar mais cedo em casa. Sete dias depois, em Paraisópolis, mais duas vítimas. Umas delas já havia se rendido quando foi alvejada por disparos. A autonomia e a vontade de tirar a vida cegam os agentes e não importa se você está atrás de uma condução ou sem oferecer perigo: se correr, eles matam; se você se render, eles matam também.
Há pelo menos cinco anos, a Rede de Observatórios tem denunciado um crescimento da letalidade policial em estados brasileiros e apontado que a política de morte tem raça, cor, classe social e faixa etária. E nos dados mais atuais, registrados no relatório Pele Alvo: mortes que revelam um padrão, nada mudou. Jovens negros, pobres e favelados foram 87,8% entre as 3.169 pessoas vítimas da polícia com dados disponíveis e acessíveis. Ou seja, 2.782 eram negras.
No passado, o secretário de segurança da Bahia, Ricardo Mandarino, rebateu os números e desafiou quem quer que fosse a provar que o estado estaria entre os maiores índices de violência do país. Ele estava errado em 2022 e continua errado hoje. O Pele Alvo de 2024 mostrou que a unidade federativa foi a única entre as nove monitoradas a atingir mil mortos pela polícia e avançar em direção ao segundo milhar. Foram 1.702 mortes provocadas por agentes do estado — o segundo maior número já registrado pela Rede desde 2019. Quase 100% dos mortos eram negros. O Atlas da Violência, divulgado este ano pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), mostrou que o estado baiano tem a segunda maior taxa de homicídios de jovens por 100 mil habitantes (113,7), correspondendo a mais de 12 vezes a taxa de São Paulo (10,2).
Infelizmente, os equívocos não são pontuais ou particulares de São Paulo e Bahia. O Rio de Janeiro vive um cenário conflagrado de conflitos bélicos envolvendo policiais, facções e milícias. O estado, inclusive, é um caso interessante, pois a ADPF 635 poderia ser uma possibilidade de se aproximar da redução dos riscos/erros e, sobretudo, frear a violência policial extrema. E até certa medida, cumpriu com esses pontos. Segundo o FBSP, desde a implementação da ADPF, em 2019, houve redução significativa de mortes por intervenção policial (de 1.814 mortos em 2019 para 699 em 2024), queda nos homicídios dolosos, roubos de veículos, roubo de carga e roubo de rua. Mesmo demonstrando efetividade, a ADPF não deixou de sofrer ataques das forças de segurança e de parlamentares de extrema-direita. Para esses grupos, a medida imobilizava a atuação das polícias, além do argumento delirante e sem qualquer comprovação de que o “engessamento” policial estaria tornando o Rio uma espécie de “resort de facções”.
Em 2025, o Supremo Tribunal Federal (STF) anunciou uma decisão conjunta sobre a ADPF, e escolhas preocupantes foram feitas, a despeito de pontos positivos comemorados por movimentos sociais e outros setores progressistas. A maioria das restrições à atuação das forças de segurança foram derrubadas, as constantes críticas à polícia atenuadas e, novamente, cabe à polícia decidir sobre o uso necessário da força. Houve também recuo sobre a não realização de operações perto de escolas e unidades de saúde, e sobre o uso de helicópteros e disparos a partir deles. Minha intenção não é enviesar o discurso trazendo somente os pontos negativos dos novos rumos tomados pelo STF, mas há que se pensar: se o governador Cláudio Castro comemorou a decisão final, devemos mesmo nos dar por satisfeitos?
Se você ainda não se convenceu, trago aqui mais algumas evidências. Já com as novas diretrizes da ADPF em vigor, os últimos meses no Rio foram de inúmeras operações policiais, fechamentos da principal via do estado (11 no primeiro semestre), de escolas e unidades de saúde, ônibus queimados em protestos e usados como barricadas, caos em diversas comunidades e sucessivos erros que levaram a mortes de inocentes, como Herus Guimarães Mendes, 24 anos. Ele foi morto em uma ação desastrosa do Bope na favela Santo Amaro, durante uma festa junina. E advinha: nada disso impediu o avanço de grupos criminosos pelo território. Complexo de Israel, Morro dos Macacos, Morro do Juramento, Serrinha estiveram recentemente no centro de disputas e operações constantes, com consequências que impactaram a cidade.
A falsa guerra às drogas segue em marcha sob a batuta de coturnos, fardas, fuzis e canetas e, com ela, mais mortes e prisões. Mas nesse projeto de segurança não há sequer estrutura para suportar uma população carcerária inflada. No Ceará, por exemplo, oito presídios foram interditados por superlotação, um deles, a Unidade Prisional de Sobral, tinha um excedente de 40%. Pernambuco foi pelo mesmo caminho e 11 penitenciárias funcionavam em condições precárias, com 400% de excedente de pessoas encarceradas. Com a ajuda do diretor penitenciário, o presídio de Igarassu funcionava como “resort do crime”, permitindo aluguel de espaços para dormir, churrasco e entrada de garotas de programa.
A Copa do Mundo de Clubes trouxe um ensinamento ao ecossistema do futebol e mostrou que algumas verdades não eram tão reais. De igual modo, a segurança pública nos dá mostras diárias de que não estamos no caminho da redução da violência e do aumento da sensação de segurança. E por vezes, as ações contradizem o discurso vazio e nos mostram que não há interesse em mudar essa realidade. Para alguns talvez este texto seja pessimista, mas considere também que ele pode ser uma tentativa de nos confrontarmos com verdades, por vezes duras demais, que, juntas, nos dão dimensão das falácias e das práticas dos governos.
Wellerson Soares é coordenador de comunicação da Rede de Observatórios.*