Ser jovem no Piauí é viver a Teoria do Maldito
Por Elton Guilherme*
“É no barulho do silêncio que eu reflito entorpecido, atribulado várias ideias, andando meio que perdido. Trombo moleque na esquina, flagrante e armado, esperando mais um vacilo, reagiu, virou finado! É só mais uma pauta pro racista da TV pedir redução penal para te encarcerar, matar, prender. ‘Bandido bom e bandido morto’ esse teu conceito é sem noção, pra quem não teve porra nenhuma, cedo o crime é opção. De canhão na mão, morador de invasão, gambiarra na luz, na água, no teto e no chão, mas tá na função, quer ser chamado de patrão, vacilou, se perdeu no labirinto da ilusão e agora na prisão, procura uma solução, enquanto o burguês aplaude a operação. Tristeza no coração da tua mãe fica esquisito, fortalece, nutre e cresce a teoria do maldito: A teoria do maldito…”
A recente extinção da Delegacia de Proteção ao Menor em Teresina não pode ser lida como um simples rearranjo administrativo. Trata-se de um movimento que se soma a um processo mais amplo de esvaziamento de políticas públicas voltadas às infâncias e às juventudes piauienses, justamente em um contexto em que a juventude segue sendo a maior vítima de mortes violentas intencionais e de encarceramento em massa. Dados recentes confirmam que a morte de jovens negros periféricos continua sendo uma tragédia anunciada e sistematicamente negligenciada no Piauí.
O caso de Alex Nascimento Mariano, 15 anos, assassinado em uma escola na zona sul de Teresina, evidencia de forma cruel o quanto os espaços que deveriam garantir proteção e futuro se convertem, muitas vezes, em cenários de vulnerabilidade e morte. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que consagra o princípio da proteção integral, parece existir só no papel. Pela lei, “nenhuma criança ou adolescente será objeto de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”, mas a realidade concreta revela a incapacidade, ou leniência do Estado, em materializar esse compromisso. Não se trata apenas da ausência de uma delegacia especializada, o que se evidencia é a desarticulação entre políticas de segurança, educação e assistência social, criando um vácuo institucional no qual prosperam tanto a criminalização seletiva da juventude quanto sua exposição à violência letal e ao cárcere.
Dados recentes da Secretaria de Segurança Pública do Piauí reforçam esse quadro. Entre janeiro e agosto de 2025,o número de adolescentes apreendidos em flagrante aumentou cerca de 24% em relação ao mesmo período de 2024, enquanto as mortes de jovens de 12 a 17 anos em Crimes Violentos Letais Intencionais cresceram 50%. O total de vítimas até agosto de 2025 (33) já supera o número registrado em todo o ano anterior (31). Esses indicadores revelam que, mesmo com a intensificação da repressão, a violência letal contra adolescentes segue em ascensão. O Estado, portanto, mostra-se mais eficiente em punir do que em proteger, reiterando uma lógica de gestão da morte e de criminalização da juventude pobre e negra.
Essa contradição é expressa contundentemente no rap “Teoria do Maldito”, do grupo Reação do Gueto. A música narra a realidade de adolescentes e jovens que crescem em territórios precários, onde luz, água e teto existem por “gambiarra”, denunciam como a mídia transforma a pobreza em espetáculo e como a própria universidade, muitas vezes, transforma o sofrimento periférico em objeto de pesquisa, sem que isso reverta em transformações concretas. O maldito da teoria é justamente o jovem periférico que segue sendo descrito, categorizado, explicado, mas continua morrendo ou preso, ou morto quando preso. A realidade material, bem como os dados amplamente divulgados, nos obriga a reconhecer que a violência contra jovens e adolescentes no Piauí não é exceção, mas regra. O assassinato de Alex, a extinção da Delegacia do Menor e as estatísticas de mortes violentas letais intencionais compõem o quadro de um Estado que se mostra mais eficaz em gerir a morte do que em proteger a vida.
Frente a isso, a cultura periférica, como o hip-hop, emerge como espaço de elaboração crítica, denúncia e resistência. A cultura juvenil e de quebrada nos lembra que, enquanto direitos forem tratados como favores e a juventude negra for reduzida a alvo preferencial da violência, nossos direitos permanecerão como promessa não cumprida. O desafio é, portanto, ético, político, epistêmico e coletivo. Ao transformar a teoria em prática, a ideia em ação e a denúncia em mudança, conseguiremos garantir, sobretudo, que Alex e tantos outros não sejam apenas mais um número em estatísticas de letalidade, mas um chamado à urgência de políticas que façam das vidas de jovens e adolescentes periféricos valerem a pena serem vividas e protegidas.
*Elton Guilherme é pesquisador do Observatório do Piauí