Ter valores é o suficiente para ter justiça?
Por Wellerson Soares*
Um dos julgamentos mais aguardados dos últimos anos se desenrola com a expectativa por um desfecho — finalmente. Os ex-policiais militares Ronnie Lessa e Élcio Queiroz, acusados das mortes da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, estão sendo julgados em júri popular. Foram 2.388 dias até chegar este momento. Um longo processo de investigação precisou avançar sobre um caminho fraudulento, que tentava impedir a identificação dos executores e dos mandantes, até a captura dos autores do crime, e, após mais e mais burocracias legais, levar os acusados ao banco dos réus.
Com um histórico nada simples, porém, o julgamento não dá indícios de um desfecho previsível, ainda que os réus tenham confessado participação no crime. Principalmente se considerarmos dois aspectos, ambos envolvendo o júri. O primeiro, é o fato de os sete jurados que formam o Conselho de Sentença do júri popular do caso de Marielle e Anderson serem homens brancos, em sua maioria de meia-idade. As duas mulheres que haviam sido sorteadas para integrar o grupo foram dispensadas pelos advogados de defesa dos réus — defesa e acusação podem recusar até três jurados.
Promotor do caso, Fábio Vieira defendeu a formação do júri e afirmou que não necessariamente precisavam ser considerados aspectos como religião, raça e gênero na composição dos jurados. Para ele, bastava apenas “ter valores dentro de si”.
No entanto, a argumentação e a afirmação confiante do promotor suscitam reflexões. Nos últimos anos, o Brasil teve demonstrações assustadoras da capacidade das pessoas em defender seus valores. Sob convicções deturpadas, Rodrigo Amorim e Daniel Silveira tentaram romper com o simbolismo da busca por justiça no caso Marielle e Anderson. Ao quebrarem a placa com o nome da vereadora, meses após sua morte, tentavam, segundo eles, “restabelecer a ordem”. Anos depois, ambos posaram novamente com parte do material quebrado, emoldurado e exposto no gabinete de Amorim como um sinal de orgulho.
Os valores também levaram um grupo a atos de vandalismo em janeiro de 2023, destruindo a sede dos três poderes em Brasília, na tentativa de um golpe militar contra o governo eleito para restabelecer Jair Bolsonaro como presidente do Brasil.
O segundo aspecto tem a ver com o histórico recente de julgamentos em júri popular que tinham policiais como acusados, sobretudo policiais ainda em atividade. Em março deste ano, o Tribunal do Júri decidiu que o PM Alessandro Marcelino de Souza, acusado de matar com um tiro nas costas Johnatha Lima, não teve a intenção de matá-lo. Há duas semanas, o mesmo tribunal popular absolveu os sete policiais militares acusados pela morte do dançarino Douglas Rafael da Silva Pereira, o DG. O jovem de 26 anos à época também foi morto com um tiro nas costas.
Dizer que “basta ter valores dentro de si” não deve ser suficiente para composição de um júri popular, que tem de ser uma expressão democrática da sociedade civil. A possibilidade de participação de pessoas comuns e a diversidade que essa modalidade pode trazer para julgamentos de crimes intencionais contra a vida não devem ser ignoradas. A inclusão da sociedade nesse processo traria diversidade de perspectivas sobre o caso e diminuiria a possibilidade de decisões parciais.
Wellerson Soares é coordenador de comunicação da Rede de Observatórios.*