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“PL do Estupro” equipara aborto a homicídio

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event 18 de junho de 2024

por Tayná Boaes*

A mobilização na ofensiva contra o aborto legal no Brasil ganha novos desdobramentos. O Projeto de Lei 1904/2024, de autoria do deputado federal Sóstenes Cavalcante (PL/RJ), foi aprovado na Câmara dos Deputados após votação relâmpago na quarta-feira (12). A proposta equipara as penas de aborto feito após a 22ª semana de gestação às penas de homicídio, dificultando ainda mais o encaminhamento da lei que garante o aborto legal em caso de estupro. No Brasil, também é permitido aborto sob outras duas hipóteses: a gravidez representa risco à vida de quem está gestando e/ou anencefalia fetal.

A pauta provoca incessantes discussões do movimento pró-aborto e contramovimento, este último responsável por colocar em curso a falência dos poucos marcos civilizatórios que temos nas políticas de justiça reprodutiva, sob a alegação de divergências moral e religiosa. A discussão sobre estabelecer tempo gestacional em que deve ser solicitado o aborto legal ingere a iminente inviabilidade da interrupção da gestação para pessoas sobreviventes da violência sexual.

O cenário é agravado quando os dados revelam que as crianças são as maiores vítimas. Segundo o Boletim Epidemiológico da Violência Sexual contra crianças e adolescentes, no Amazonas, entre 2019 e 2023, foram notificados 9.035 casos de violência, na qual a faixa etária mais afetada era de 10 e 14 anos. Considerando as dificuldades de uma criança reconhecer e falar sobre episódios de violação e de uma possível gravidez, ainda existe uma problemática de ordem prática: o acesso a serviços especializados, a exemplo do Amazonas, caracterizado pelos muitos municípios ribeirinhos. A subnotificação do estupro no estado adentra também aspectos de locomoção.

A realidade brasileira inclui número limitado de hospitais com equipes sensibilizadas na realização do procedimento do aborto legal, ação também marcada pela falta de informação sobre os centros de referência, legislação restrita e insegurança jurídica dos profissionais da saúde. Vale ressaltar o fechamento de sistemas de saúde habilitados para realização do procedimento, levando a procura de clínicas clandestinas, sem regulamentação e infraestruturas inapropriadas, explicando a alta taxa de mortalidade das pessoas que recorrem ao aborto inseguro.

Relembre alguns casos

Em 2019, no município de Coari (AM), o pai engravidou a própria filha, uma menina de apenas 12 anos. Os abusos começaram aos 9 anos. A gravidez foi identificada depois das constantes reclamações de mal-estar e mudanças no corpo da criança. Apesar do direito ser assegurado na legislação brasileira, não houve nenhum pedido de aborto. O inquérito aponta motivação religiosa. Meses depois, o parto prematuro submeteu a menina a uma cesária, levando a óbito devido ao quadro grave de pré-eclâmpsia e infecção generalizada.

No Espírito Santo, uma criança de 10 anos foi estuprada por um tio e engravidou. O caso ocorrido em 2020 causou uma grande mobilização, fomentada pela pressão nos bastidores da então ministra da mulher, família e direitos humanos, Damares Alves. A criança e a família foram coagidas a desistirem do aborto legal. Porém, a menina conseguiu fazer o procedimento no interior de São Paulo, mas teve a sua identidade vazada. Ativistas antiaborto foram protestar na frente da instituição.

Em Santa Catarina, durante uma audiência em 2022, a juíza Joana Ribeiro Zimmer tentou induzir uma menina de 11 anos a continuar com a gestação em decorrência de violência sexual, perguntando a criança se ela “suportaria ficar mais um pouquinho”. A magistrada ainda tentou reverter o pedido de interrupção gestacional mantendo a criança num abrigo longe da mãe. 

PL inconstitucional

O PL do incentivo ao Estupro ou da Gravidez Infantil, como está sendo intitulado, ainda prevê pena maior para o aborto do que para o estupro. A pena máxima para os crimes de estupro são de 10 anos, o texto da proposta visa que a punição para o aborto realizado no tempo gestacional seja de até 20 anos. Ou seja, a formulação criminaliza a camada mais vulnerável da população ao invés de garantir proteção, atravessando a dignidade humana em detrimento das complexas disputas políticas, a articulação de um regime de urgência ajuda a evidenciar o estrangulamento dos direitos fundamentais de meninas, mulheres e pessoas que gestam. Caminhamos precisamente na encruzilhada entre a legitimidade do consentir e o cerceamento de escolhê-la.

Tayná Boaes é pesquisadora da Rede no Amazonas.*

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