Rede de Observatórios de Segurança

A transfobia é estrutural e nossas crianças são ensinadas a instrumentalizar o ódio

location_on
event 15 de julho de 2021

Por Dália Celeste*
Imagine  você pedir para ir ao banheiro e ser morta a facadas, estar  no terminal de ônibus e ser queimada viva ou pedir uma informação e ter o rosto deformado. Mulheres trans e travestis foram mortas assim em um intervalo de 20 dias. Esses casos não se resumem apenas em números, são pessoas com uma história, sonhos que deixarão de ser realizados, famílias em luto. São crimes que representam uma cultura de extermínio desses corpos.

No dia 18 de Junho, Kalyndra Selva Guedes Nogueira da Hora, mulher trans, negra, de 26 anos, foi encontrada morta dentro de sua casa, no bairro de Ipsep, em Recife. Ela foi vítima de asfixia e o seu companheiro é o principal suspeito. Kalyndra era artista e apresentava em muitos eventos na noite da cidade, fazia shows sempre reivindicando e trazendo a arte como resistência. Bastante ativa nos espaços LGBTQIA+. A performer que alegrava tantas vidas,teve a sua vida ceifada de forma brutal pelo transfeminícidio.

Menos de uma semana depois, no dia 24, a travesti Roberta da Silva, de 32 anos, foi incendiada viva no Cais de Santa Rita, um dos terminais mais movimentados do centro da cidade do Recife.  Ela teve 40% de seu corpo queimado. Roberta era uma travesti preta em situação de rua, estava dormindo quando sofreu o ataque de um adolescente. Devido a gravidade das queimaduras, teve seus dois braços amputados e ficou alguns dias internada no Hospital da Restauração. Infelizmente, Roberta não aguentou e faleceu na manhã do dia 09 deste mês. Sua morte, causada por um adolescente, nos faz entender que vivemos em uma estrutura que é transfóbica e que ensina crianças e adolescentes como instrumentalizar o ódio às travestis e pessoas trans.


No começo de julho, dia 05, a travesti negra Crismilly Pérola foi assassinada com um tiro na cabeça, na Comunidade Beira Rio, na Várzea, em Recife. Conhecida como Piu Piu, Crismilly era cabeleireira e bastante querida no bairro a qual era moradora. Antes de ser morta, a mesma sofreu agressões causadas por pauladas. Ela contou à mãe que sempre sofreu xingamentos no meio da rua.

Em Santa Cruz do Capibaribe, no agreste de Pernambuco, Fabiana da Silva Lucas, de 30 anos, foi assassinada na madrugada de 7 de julho. A vítima pediu informações para ir ao banheiro, quando um homem a seguiu e matou com diversas facadas. Fabiana foi encontrada morta às margens da rodovia PE-160, com partes de suas roupas rasgadas, ela foi surpreendida violentamente sem a possibilidade de se defender. 

Desde a infância, corpos trans e travestis são colocados em uma lugar de desumanização e desigualdade, reproduzindo assim, a crença do ódio e do extermínio. O homem que mata uma mulher trans e travesti, não mata por vergonha do desejo a este corpo, ele mata por não saber lidar com o desejo de um corpo que desde sua infância foi ensinado a odiar.

E, em pouco mais de 20 dias, foram quatro mortes e cinco tentativas de transfeminicídio no estado de Pernambuco. No último ano, o estado foi o sétimo mais perigoso para travestis e mulheres trans viverem, de acordo com a Antra.

No mesmo dia da morte de Roberta, enquanto ainda sentíamos a dor da sua partida, a travesti e a enfermeira Fernanda Falcão, de 28 anos, sofreu uma tentativa de transfeminicídio, dentro de sua própria casa, na cidade de Paulista, Região Metropolitana do Recife.


“Quatro homens chegaram em duas motos. Um deles subiu a minha escada com a arma na mão e chutou minha porta, que não cedeu. O pessoal da minha rua veio intervir por mim, ele desceu correndo e foi embora. Passei a noite toda na delegacia, onde fiz corpo de delito e prestei queixa. Consegui apoio de uma entidade, que me acolheu e me colocou em um lugar seguro. Estou escondida. Eu acredito que tenha sido uma represália porque não tenho problema com ninguém, nem desavença com ninguém. Sou muito bem quista na minha comunidade ”, relata.

Esse ataque fez com que Fernanda decidisse entrar na justiça com um pedido de morte assistida. Ela deseja tomar remédios para morrer sem dor. “É pelo sentimento e pela certeza de que vou ter uma morte brusca. A certeza que minha mãe vai poder ver meu corpo pelo menos limpo, em um caixão, para que eu não dê o desgosto da minha família me pegar no meio do mato, no meio da rua, toda esfaqueada. É para ter dignidade pelo menos nesse momento ”, explicou em uma conversa com o Jornal do Comercio.

Fernanda é uma grande ativista para as mulheres trans e travestis no estado, consultora do Conselho Estadual de Direitos Humanos, do Comitê Estadual de Prevenção ao Tráfico de Pessoas e do Mecanismo Estadual de Combate à Tortura. Coordenadora da Rede Nacional de Travestis e Transexuais e Homens Trans Vivendo e Convivendo com HIV. Ela é atuante no Projeto Mercador de Ilusões, que auxilia profissionais do sexo. Mesmo ocupando esses espaços, nada garante segurança a sua  vida.

É preciso políticas de segurança pública para essa população, medidas de inclusão nos espaços sociais de forma humanizada, para dessa forma, reduzir os danos de corpos trans e travestis lançados dentro dos espaços de marginalização e execução. Isso é urgente. 

Mandatos  e movimentos sociais do Recife, Olinda e Paulista encaminharam pedidos de políticas públicas específicas para à comunidade LGBTQIA+. A Prefeitura do Recife também criou um edital para a Casa de Acolhida , com o nome de Roberta Silva. Mesmo que seja importante essa medida, a qual é uma grande conquista dos movimentos sociais e ativistas do estado, é necessário que seja estabelecido um diálogo com essa população de forma mais compacta.

É preciso que o estado e o governo se responsabilizem pela morte de pessoas trans e travestis. A transfobia estrutural nos nega espaços de empregabilidade, educação, vínculos afetivos e sociais, o amor e o afeto. Esse é um problema que não é de nossa responsabilidade. A cisgeneridade precisa se responsabilizar pelo processo de extermínio e exclusão de nossos corpos.

** Dália Celeste é pesquisadora da Rede de Observatórios da Segurança

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *