Feminicídio é crime de Estado
Ricardo Moura*
Erika Cristina Pereira, de 22 anos, foi morta a facadas dentro de casa pelo companheiro, em Quiterianópolis. O homem evadiu-se do local com apoio de um familiar. Erika tinha três filhos. O acusado foi preso quatro dias depois em Tauá. Kelcy Campos, de 31 anos, foi esfaqueada e morta pelo marido, no bairro Conjunto Esperança. O homicida tentou se matar em seguida, foi socorrido, mas morreu pouco depois. No município de Assaré, Estefani Maria de Jesus, de 28 anos, estava separada há seis meses de seu ex-marido quando foi alvejada ao lado de seu novo companheiro e do cunhado na calçada em frente à sua residência. O agressor, apontado como um empresário do ramo da cerâmica, chegou em uma Hilux, efetuou os disparos e fugiu. A vítima estava grávida de três meses.
Os casos citados acima ocorreram na primeira semana de abril, em diversos pontos do Estado. Por uma infeliz coincidência, na mesma semana em que a primeira governadora mulher do Ceará tomou posse. Avanço no campo da gestão governamental, mas seguimos no mesmo retrocesso de sempre nas violentas relações de gênero do cotidiano.
O levantamento mais recente da Rede de Observatórios da Segurança sobre o tema revela que, em 65% dos casos de feminicídios e 64% dos casos de agressão, os criminosos eram companheiros das vítimas. No que se refere à motivação das agressões e mortes, as três maiores causas apontadas são brigas (28%), término de relacionamentos (9%) e ciúmes (8%). Quando a cor da vítima é informada, constata-se que 50,7% das vítimas são negras, 48,6% brancas e 0,7% indígena.
O roteiro dos crimes, mais que repisado, é um acinte para toda a sociedade pela forma como as ocorrências se repetem e pela motivação torpe que as guia. É inadmissível que tais ocorrências sejam abordadas majoritariamente como questões de foro íntimo e privadas. Há uma legislação sobre o tema que precisa ganhar maior concretude e se incorporar em nossa cultura. Para que isso aconteça, contudo, o poder público necessita tratar essa pauta como prioritária.
Tomo emprestado a frase que dá origem ao título desta coluna da antropóloga mexicana Marcela Lagarde. A pesquisadora ressalta o caráter político do feminicídio, indo além de uma mera relação pessoal entre homem e mulher: “Um dos aspectos relevantes da violência de gênero é sua dimensão de mecanismo político, cuja finalidade é manter as mulheres desfavorecidas e desiguais no mundo e nas relações com os homens, permitindo que elas sejam excluídas do acesso a bens, recursos e oportunidades”.
Se essa situação de desigualdade persiste, trata-se de uma falha estrutural e estruturante na defesa da justa partilha de bens, recursos e direitos entre os gêneros. Por conseguinte, afirma a pesquisadora, “é necessário que os casos paradigmáticos de feminicídio sejam interpretados como um sinal vermelho que se sobressaem a partir de uma situação crítica relativamente enterrada, como a constatação de que o Estado falha não só onde se produz o feminicídio, mas em muitos outros espaços”.
O Estado não apenas falha, mas se omite. Vale ressaltar que a palavra “feminicídio” foi suprimida do atual Plano Nacional de Segurança. A omissão se espraia na forma como os crimes de feminicídio são classificados pelos órgãos de segurança. Não raro, os dados de institutos e redes de pesquisa divergem das estatísticas oficiais sobre esse tipo de ocorrência. Levar a sério as amplas determinações do feminicídio é questionar frontalmente as limitações de nossas políticas públicas e da forma como homens e mulheres se organizam em sociedade. Mas quem tem coragem de mexer nesse vespeiro? O mais cômodo é atribuir tudo apenas a um momento de ira, de inconsciência, de passionalidade, individualizar o ato para que ele caiba nos limites estreitos de uma ação meramente individual.
Enxergar o feminicídio como uma anomalia e não como um sintoma só serve para que possamos varrer o problema para debaixo do tapete. Conforme os estudos da área, o assassinato de uma mulher tem sua origem a partir de agressões verbais, de crimes cometidos e classificados como de menor gravidade, quase inofensivos, nas ameaças recorrentes, nos abusos cotidianos que ficam impunes. Os efeitos sociais dessa masculinidade perversa podem ser observados diariamente. São sinais de alerta que teimamos em não reconhecer e que por vezes não obtêm a resposta adequada do poder público.
Dar visibilidade a essa situação passa também por pautar, de forma destemida, o debate sobre sexualidade e gênero desde cedo. Atitudes, papéis, expectativas e comportamentos que visem à promoção da igualdade de gênero devem ser promovidos tanto em casa quanto na escola. Se o ódio pode ser aprendido, a tolerância, o respeito e a igualdade precisam ser cultivadas.
Definir com mais qualidade, prevenir, educar e agir de forma mais eficaz. Quatro verbos que integrariam o esboço de um plano de ação contra o feminicídio cuja competência reside fortemente na capacidade estatal de agir. Não é preciso inventar a roda no que tange à defesa da vida das mulheres, mas os governantes precisam assumir, em primeiro lugar, que o feminicídio é, acima de tudo, um problema de Estado.
*Ricardo Moura é coordenador do Observatório da Segurança do Ceará