Feminicídio: hoje sabemos nomear o que já foi crime “comum”
Por Edna Jatobá*
O ano era 1993. O mês já não me lembro ao certo. Eu ainda não tinha completado 11 anos. Era de manhã cedinho e acordei com barulho de choro e conversas acaloradas. Sem muito filtro e preparação, soube do assassinato de tia Judite, Nilda, Tamires e Sandra. Quatro mulheres da minha família haviam sido assassinadas. Elas foram vítimas de feminicídio, só não sabíamos nomear naquela época.
Elas estavam em Petrolina e eram o núcleo familiar de meu tio Antenor. A que eu tinha mais proximidade era minha prima Nilda. Eu a via como uma irmã mais velha. Ela era uma mulher jovem, linda, inteligente e com paciência no convívio comigo – que mais era doçura e cumplicidade do que qualquer outra coisa.
Meu pai era bem mais velho que minha mãe e passou por várias internações por problemas de saúde. Minha mãe precisava acompanhá-lo em tratamentos médicos com constância. Quem segurava as pontas e cuidava da minha irmã e de mim, era Nilda. Ela veio de Petrolina para o Recife para estudar e procurar emprego. Lembro que quando ela saía para procurar vagas nas lojas no centro da cidade, me levava. Nós tomávamos sorvete e refrigerante na Rua das Calçadas. Nilda viveu conosco por uns dois ou três anos.
Tio Antenor era irmão da minha avó e se estabeleceu como feirante em Petrolina. Enquanto a filha estava conosco, ele e tia Judite dirigiam um Corcel azul até Recife. Eles sempre estavam acompanhados de Sandrinha – irmã adotiva de Nilda. Porém, dessa vez, Nilda foi visitá-los. Ela passaria as férias e voltaria no início do ano novo. Antes de ir, deixou uma foto dela como uma letra linda, dizendo para que eu olhasse a foto se sentisse saudades. Nilda nunca mais voltou.
Ela e sua mãe, além da sua irmã adotiva e sua sobrinha de seis e cinco anos, respectivamente, foram mortas pelo ex-namorado de Nilda na casa onde moravam – ele nunca aceitou o término do relacionamento. O relatório Elas vivem: dados que não se calam, da Rede de Observatórios de Segurança aponta companheiros e ex-companheiros como 75% das autorias de feminicídio deste último ano. O que nos mostra que deste ponto de vista infelizmente não mudamos muito. Minha prima querida e minha tia foram assassinadas a facadas e depois degoladas. As crianças foram mortas a marretadas na sala enquanto assistiam a Cavalinho Azul – nunca mais me esqueci do nome desse desenho.
Na época, esse crime bárbaro, que abalou minha família e me marca até hoje, foi um crime “comum”. “Que tristeza, mas temos que nos conformar”, todos diziam. Mas eu não. Esse episódio não é algo que eu queira lembrar, porém é sem dúvida algo que nunca vou esquecer. Embora o feminicída tenha sido preso, a sensação é de que a justiça nunca chegou.
Não é à toa que trabalho com o que trabalho. Quando reviso os casos de feminicídio no nosso banco de dados, olho para cada um deles com um ar perturbador de familiaridade. Eu fico pensando se minhas primas e tia estariam vivas se as circunstâncias que levaram à morte delas tivessem se dado nos dias de hoje. Porém, infelizmente, penso que não.
Os crimes contra mulheres aumentam a cada ano nos registros da Rede de Observatórios da Segurança. Em 2022, uma mulher foi vítima a cada quatro horas. Foram registrados 495 feminicídios – 59 deles em Pernambuco. Sabemos ainda que esses números que assustam não representam a totalidade dos casos. Muitos crimes não recebem a classificação correta.
Hoje, eu entendo que as quatro mulheres da minha família foram vítimas de feminicídio. Tia Judite, Sandrinha e Tamires foram vítimas de feminicídio por conexão. Mas para o estado talvez essas três mortes não sejam consideradas feminicídio e apenas Nilda seja vista como vítima desse tipo de crime. Situação que faz com que a produção cidadã de dados seja de extrema importância. Afinal, quando as dinâmicas dos crimes são analisadas, conseguimos entender que esse episódio resultou em quatro vítimas de feminicídio.
Escrevo, pois o óbvio precisa ser dito. A luta é imensa. Do lado de cá, sigo lutando para dar nome às coisas. Minha esperança é de que todo este esforço resulte em uma sociedade de mulheres livres em que estejamos seguras.
Edna Jatobá é coordenadora do Observatório de Pernambuco