Internação compulsória e o uso político da saúde pública
Por Adyel Beatriz*
Uma publicação nas redes sociais feita em novembro pelo prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, reacendeu o debate sobre internação compulsória de dependentes químicos, ou seja, realizada sem o consentimento do paciente. Ele defendeu a medida como forma de prevenção de crimes.
No texto, Paes disse ter determinado ao secretário municipal de Saúde, Daniel Soranz, que preparasse uma proposta de implementação no Rio de internação compulsória de usuários de drogas. A política foi empregada pelo prefeito em sua primeira gestão (2009-2012) e suspensa após críticas de especialistas e ação do Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ). A nova investida aconteceu dias após a morte do jovem Gabriel Mongenot, 25 anos. Ele estava no Rio para o show da cantora Taylor Swift e num assalto em Copacabana foi esfaqueado. As investigações apontaram os suspeitos como moradores de rua e usuários de drogas.
“Não é mais admissível que diferentes áreas de nossa cidade fiquem com pessoas nas ruas que não aceitam qualquer tipo de acolhimento e que mesmo abordadas em diferentes oportunidades pelas equipes da prefeitura e autoridades policiais, acabem cometendo crimes. Não podemos generalizar, mas as amarras impostas às autoridades públicas para combater o caos que vemos nas ruas da cidade, demanda instrumentos efetivos para se evitar que essa rotina prossiga”, escreveu Paes.
Após a declaração do prefeito, O Ministério Público Federal (MPF), por meio da Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão, e a Defensoria Pública da União (DPU) emitiram uma nota técnica ao prefeito, manifestando oposição à prática de internação compulsória de usuários de drogas em unidades terapêuticas no município.
No comunicado, o MPF e a DPU ressaltam como a internação compulsória de usuários de drogas é considerada inconstitucional, representando uma medida higienista, violando a dignidade humana. “A Constituição Federal afirma que ninguém será privado de liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal. Ora, a internação compulsória é a privação de liberdade sob o pretexto de submeter um sujeito a tratamento de saúde”, frisa o texto.
A nota demonstra que um dos principais pontos de controvérsia está relacionado aos direitos individuais e à autonomia do usuário de drogas. Defensores da internação compulsória muitas vezes argumentam como essa abordagem é necessária para proteger a pessoa em questão, mas a medida representa um grande risco à garantia dos direitos fundamentais, como a liberdade pessoal e a integridade física, levantando questões éticas sobre a imposição de tratamento contra a vontade do indivíduo.
O tom efusivo da postagem traz o questionamento sobre o uso de tragédias sociais como ferramenta de alcance popular por meio das redes. Para além disso, a discussão em torno da internação compulsória de usuários de drogas é um tema complexo que transcende os limites da saúde pública, adentrando o campo político com implicações significativas.
Visando as eleições municipais de 2024, no âmbito político, a questão da internação compulsória também levanta suspeitas sobre possíveis motivações eleitoreiras. A adoção dessa pauta, às vésperas de um momento eleitoral, pode ser interpretada como uma resposta simplista a um problema complexo, buscando atender às expectativas da sociedade em busca de soluções rápidas. Dessa forma, a discussão sobre a internação compulsória se torna um terreno fértil para agendas políticas, distorcendo a prioridade de abordar as raízes profundas do problema do uso de drogas.
A complexidade da crise humanitária é exposta em números: a população em situação de rua no Brasil cresceu 38% entre 2019 e 2022, quando atingiu 281.472 pessoas, de acordo com o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). Segundo o Relatório “População em situação de rua: diagnóstico com base nos dados e informações disponíveis em registro administrativo e sistemas do Governo Federal”, um dos principais motivos apontados para a situação de rua foram os problemas do alcoolismo e/ou uso de drogas (29%).
O sistema judiciário que lida diretamente com o problema de drogas no Brasil é essencialmente punitivista. A “Pesquisa Nacional sobre o uso de crack: quem são usuários de crack ou similares no Brasil” mostra que os usuários da substância ou similares têm perfil muito específico. Das pessoas analisadas, 78,68% são homens, 79,15% não brancos e 78,11% pouco escolarizados.
O uso indiscriminado de substâncias potencialmente nocivas não é um problema apenas da saúde pública, mas também de organização social, que vai desde toda a estrutura de desorganização das relações do trabalho, de aumento de desemprego, de trabalho informal, como do domínio de um mercado informal de grupos, gangues ou milícias.
Enquanto alguns argumentam a favor dessa medida afirmando combater o consumo de substâncias ilícitas e proteger os indivíduos envolvidos, outros levantam preocupações sobre os direitos individuais, eficácia do tratamento e possíveis motivações políticas por trás dessas decisões.
A internação compulsória de usuários de drogas é uma questão multifacetada que vai além das fronteiras da saúde pública e não pode ser tratada em postagens apelativas em redes sociais, tendo em vista ser um tema muito mais profundo, técnico, social e, sobretudo, humano. Embora a proteção da vida e o combate ao consumo abusivo são preocupações legítimas, é crucial abordar essas questões de maneira ética, respeitando os direitos individuais e evitando simplificações políticas que possam comprometer a eficácia das soluções propostas.
Adyel Beatriz é assistente de comunicação da Rede de Observatórios*