Quem se beneficia com o “novo normal” das facções no Ceará?
Ricardo Moura*
Passados mais de cinco anos do reordenamento do crime organizado no Ceará, podemos afirmar que as facções já se tornaram algo tão presente em nosso cotidiano como uma ida à praia ou fazer foto da chuva. Passado o choque inicial da barbárie que assolou as periferias e os números recordes de assassinatos, parece que já não há mais o que fazer em relação à existência das facções. Restaria apenas compreendê-las como um fato natural, uma consequência inevitável da inserção do Ceará na rota internacional de tráfico de entorpecentes?
A naturalização das facções atende a diversos interesses. Se, no início, elas foram negadas pelo poder público, à época dos homicídios em queda, por volta do início de 2016, logo as organizações criminais se tornaram onipresentes e onipotentes no discurso oficial, sendo responsáveis por quaisquer ato de violência e criminalidade no Estado, como se toda a variada gama de micro violências cotidianas pudesse ser enfeixada nessa narrativa.
Após um segundo período de retração nos assassinatos, em 2019, a violência letal voltou com muita força em 2020 para refluir mais uma vez este ano. Qual o papel das facções nesse resultado tão oscilante? A resposta só é possível com investigação criminal, bem como a elucidação das causas e motivações das mortes, algo que nem sempre costuma ocorrer a contento diante da absurda quantidade de homicídios registrados. Delegar a responsabilidade do nosso morticínio às facções ajuda a explicar e a solucionar os casos mais diversos, servindo como uma justificativa aceitável para a população.
Avançamos muito pouco, contudo, em lançar luzes sobre os demais atores sociais que auxiliam o crime a se organizar: empresários, políticos e agentes públicos. Soa por demais ingênuo crer que as organizações agem por si só sem qualquer cumplicidade, conveniência, apoio, prevaricação e lucros partilhados de pessoas da mais elevada distinção social. Como se traz a droga? Como se escondem as armas? Quem deixa de prender? Quem manda soltar? Quem leva os louros por combatê-los?
Quando dois seres se beneficiam mutuamente um do outro tem-se aí um processo de mutualismo. Até que ponto determinados setores da sociedade conseguem se ver livres das relações espúrias estabelecidas em torno dessa sinergia? A expressão “crime-negócio”, utilizada por Alba Zaluar, precisa ser levada às últimas consequências nessa análise. Qual a dimensão da economia subterrânea do tráfico de drogas e de armas? Qual a dependência dela para o nosso produto interno bruto?
Operações conduzidas pelo Grupo de Atuação Especial de Combate às Organizações Criminosas (Gaeco), com apoio de membros das polícias Civil e Militar, têm desnudado as relações espúrias entre organizações criminosas, empresários, políticos e agentes de segurança, apresentando à sociedade a face oculta de um universo paralelo onde as fronteiras entre o legal e o ilegal são borradas. As investigações revelam o suporte dado por profissionais da segurança às ações do crime organizado, bem como a existência de casos de extorsão, tortura e corrupção ativa, ou seja, o próprio aparelho estatal estaria sendo utilizado para obter vantagens ilegais. Essa variedade de trocas e negociações ilícitas é o que o sociólogo Michel Misse denomina de “mercadorias políticas”.
Em outra frente, o Ministério Público identificou uma “intensa troca de mensagens” entre membros do Comando Vermelho e políticos de diversos municípios. Os diálogos mostram muita familiaridade com as gestões, além de revelar a existência de apoio da facção na campanha mais recente para prefeito ocorrida em 2020. Vale ressaltar que casos semelhantes já haviam sido noticiados anteriormente envolvendo a Guardiões do Estado (GDE). Muitos desses processos tramitam sob sigilo de justiça, dificultando a divulgação e o acompanhamento. No entanto, urge que as denúncias sejam apuradas e que a participação de cada pessoa nessa rede de crimes e trocas de favores seja investigada.
Os integrantes de facções surgem sob duas formas nos exemplos citados: ora como vítimas de extorsões por parte de agentes públicos, ora como aliados para negociatas e tramas políticas. Todas essas interações são constituídas por relações assimétricas de poder mediadas por dinheiro. Cabe a ressalva na expressão “assimétrica”, haja vista que os maus operadores da lei desfrutam de diversas vantagens competitivas para realizar seus malfeitos, como informação privilegiada e a possibilidade de dar voz de prisão a qualquer momento, por exemplo.
Para tentar compreender esse fenômeno de um ponto de vista mais analítico, é preciso recorrer ao conceito de “estado negociado”. Em seu livro Public Security in the Negotiated State, o cientista político Markus-Michael Muller chegou a essa denominação a partir do estudo da realidade existente no México, um país cuja economia é pujante, mas que sofre para conter a violência do crime organizado. “Embora em termos de violência, a óbvia incapacidade do Estado mexicano de proteger seus súditos e de exercer sua autoridade estatal em todo o seu território, o México compartilha importantes semelhanças com muitos outros Estados que são qualificados como ‘fracos’, ‘frágeis’ ou mesmo ‘falidos, ‘a maioria das interpretações sobre as causas da’ fraqueza ‘ou’ fracasso ‘do estado não pode explicar o caso mexicano”, afirma.
Por causa disso, o policiamento ocorreria de “forma altamente fragmentado e seletivo, sobredeterminado por políticas informais e práticas de negociação, permitindo que uma ampla variedade de atores se aproprie da polícia para fins privados, dependendo do capital social, político e econômico disponível. Isso reflete as características subjacentes de um tipo específico de estado, que, devido à centralidade das negociações políticas informais, chamarei de estado negociado”.
Valendo-nos de todas as adaptações possíveis, é possível observar como as práticas estatais e políticas no Brasil são atravessadas por essas negociações, tornando pouco provável que uma rede criminosa se instale de forma tão profunda em cidades e territórios inteiros sem que conte com a conivência e o apoio logístico de agentes estatais. Os maus profissionais não podem permanecer no interior de instituições que atuam na repressão qualificada à criminalidade, sob o risco de minar por completo sua eficácia. Além disso, a precariedade das condições de policiamento no Interior, na comparação com a Capital, faz com que os políticos locais tenham mais poder do que o devido.
Punir de forma exemplar esse tipo de desvio é uma tarefa tão árdua quanto urgente. Além de uma peça investigativa, os inquéritos criminais e as denúncias do MP expõem as entranhas sobre como o crime se organiza e se sustenta, revelando que a atividade criminosa é um fenômeno muito mais complexo e entranhado na sociedade e no Estado do que costumamos imaginar.
**Pesquisador da Rede de Observatórios da Segurança, editor do Blog Escrivaninha (escrivaninha.blog), especializado em segurança pública.