Rede de Observatórios de Segurança

Até o limite da honra

event 8 de agosto de 2024

Por Wellerson Soares*

Tome-se um homem, feito de nada, como nós, e em tamanho natural. Embeba-se-lhe a carne, lentamente, duma certeza aguda, irracional, intensa como o ódio ou como a fome. Depois, perto do fim… serve-se morto.

O poema de Reinaldo Ferreira é uma resposta atemporal para o que é a dinâmica policial no Brasil. O cotidiano de violência e a formação deficitária tem levado homens e mulheres comuns ao heroísmo, ignorando suas dores físicas e emocionais para servir e proteger. E o resultado disso: aumento de 26,2% nos casos de suicídios de agentes de segurança e 127 policiais assassinados em 2023, como mostra o 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).

Os números chamam atenção e nos fazem refletir sobre o que pode levar esses profissionais a condições tão extremas. “A tropa está doente e ninguém está vendo isso”, foram as palavras de uma policial que fazia parte da 3ª Companhia da Polícia Militar de Salto (SP), logo após o sargento Claudio Henrique, de 53 anos, matar dois colegas de farda por problemas com a escala de trabalho, em maio do ano passado.

A prática policial é complexa: cursos preparatórios deficitários sobre os direitos humanos — tanto dos policiais quanto dos civis abordados —, condutas criminosas no cotidiano, condições insalubres que os colocam no lugar de vítimas em determinadas ocasiões, entre outros pontos sensíveis. A exposição diária à violência e o porte de arma de fogo torna-se combinação perigosa nas mãos de um ser humano comum, cuja função, em teoria, concede-lhe a prerrogativa do uso da força e o coloca diante do desafio de não sucumbir a tamanho poder.

O sargento Claudio Henrique era conhecido como um policial gentil por colegas de farda, por alunos de uma associação na qual ensinava patinação e nas redes sociais. No entanto, as condições de trabalho motivaram as desavenças no desempenho da função e levaram-no a cometer os crimes, segundo seu depoimento gravado logo após os assassinatos.

Desde a formação policial, os candidatos a agentes de segurança são estimulados a colocar de lado qualquer subjetividade prévia e dali em diante vestir a capa, o colã e a cueca 24h por dia. O roteiro semelhante ao de histórias em quadrinhos diz que é preciso rejeitar sua humanidade em prol do bem maior: ser policial é sua nova identidade. Mas assim como nas narrativas heroicas, existe uma linha tênue entre o herói e o vilão e uma preparação inadequada pode ser crucial para estabelecer de que lado o protagonista estará.

Rispidez, embrutecimento e até mesmo incitação à violência são algumas das práticas já denunciadas em escolas de formação policial. É o caso da AlfaCon Concursos Públicos, investigada pelo MP-PR após apologia e ensinamento de técnicas de tortura aos alunos. Um professor ensina em uma das aulas a emular uma câmara de gás, situação semelhante à que vitimou Genivaldo de Jesus Santos, de 38 anos, morto após ser colocado no porta-malas de uma viatura da Polícia Rodoviária Federal (PRF) tomada por lacrimogêneo


E essa mentalidade desumanizante, capaz de machucar, tem refletido diretamente no dia a dia das populações. De acordo com dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o Brasil registrou 6.393 mortes por intervenções policiais em 2023, cerca de 3,1 mortes por 100 mil habitantes. Se considerarmos os últimos dez anos (2013 a 2023), a letalidade policial no país aumentou 188,9%. 

Os dias passam, pessoas são vitimadas pelas polícias e tratadas como “efeito colateral” da guerra às drogas ou mesmo criminalizadas, como o caso do jovem Thiago Flausino, morto por policiais, que tentaram alterar a cena do crime e colocar uma arma ao lado do corpo do adolescente

Essa mesma mentalidade impede o reconhecimento de um problema interno nas corporações e que a questão seja tratada como um problema passível de solução. A “síndrome de Morgan Freeman” parece ser a diretriz: “Se não falamos do problema, ele não existe”. Com isso, os rumos da segurança pública continuam em risco, para a categoria dos policiais e para todos nós. 

Wellerson Soares é coordenador de comunicação da Rede de Observatórios.*

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