A violência contra corpos negros é naturalizada na mídia
Marcos Vinicius de Araújo**
Assistimos estarrecidos na última semana às cenas do massacre do Jacarezinho onde a matança foi televisionada e a violência defendida pela narrativa criada na mídia. Aquelas pessoas eram em sua maioria negras. Esse é um espelho do que acontece em diversos outros produtos como séries, realities, filmes e novelas. Por meio das ferramentas da ficção, a brutalidade policial contra pessoas negras parecem normais, naturais e inevitáveis. Lembro que o Emicida já deu o papo de que um corpo preto morto é tipo os hit das parada: todo mundo vê, mas essa porra não diz nada.
Tenho observado, sobretudo nas redes sociais, as repercussões em torno do curta metragem vencedor do Oscar Dois Estranhos (Two Distant Strangers). O filme conta a história de Carter James, um cartunista negro que fica preso em um looping após ser morto durante uma abordagem policial violenta. Ele é forçado a viver repetidamente o mesmo dia – e a própria morte de diferentes formas.
Entre as muitas opiniões sobre o filme, o que quero destacar aqui, é como a mídia e o seu papel de cristalizar certas imagens no senso comum, de alguma forma, naturaliza a violência explícita e crua contra o corpo negro. O meu papel não é dizer se você deve ou não assistir, mas questionar que essas imagens de extrema violência e tortura gráfica de pessoas negras podem encontrar um lugar de reforço e legitimação nas produções audiovisuais.
Filmes e séries que destacam a experiência estética da violência afetam cada um de modo particular, mas reviver esses terrores raciais através da ficção pode ser bastante doloroso para pessoas negras. Mesmo sendo um filme de contexto estadunidense, sabemos que essa é a mesma dinâmica racista que opera na conjuntura brasileira. O alvo da violência policial tem cor e os números da Rede de Observatórios têm mostrado isso há quase dois anos: na Bahia, por exemplo, 97% das pessoas mortas pela polícia em 2019 são negras
Outro exemplo é a novela que acabou há pouco na Rede Globo, ‘Amor de Mãe’, a trama explorou cenas de sofrimento e morte de personagens negros como Marconi, Wesley, Lucas e Rita, todos com final trágico. Essa brutalidade retratada em cena ignorou a possibilidade de um futuro em que pessoas negras estejam vivas, que possuam dignidade ou tenham alguma redenção.
Pessoas negras experimentam a violência em contextos marcados pela tensão racial. Ao reencenar a morte de um corpo negro, nota-se um reforço “quase sádico” em exibir cenas chocantes dessa violência. Isto são marcas históricas de uma cultura audiovisual que, desde sempre, espetaculariza e banaliza a morte negra. É preciso discutir sobre os limites da ‘representatividade’, uma vez que incluir negros em instituições estruturalmente racistas serve como uma maneira de legitimar o racismo com a desculpa de que existem negros ocupando esses espaços.
Ainda que essas tramas e produções retratem a dimensão ideológica do racismo como ponto central, muitas mantêm a mesma e velha narrativa estereotipada, cheias de equívocos, discursos enviesados e sem apresentar outras formas de embates narrativos nas escolhas artísticas. A dor e a realidade de ser negro não pode (e não deve) ser transformada em um entretenimento que estilize violências, mortes e humilhações em rede nacional. Pessoas pretas não querem morrer, seja na vida real ou na dramaturgia.
** Marcos Vinícius de Araújo é mestrando em comunicação na UFF e analista de redes sociais da Rede de Observatórios da Segurança