A violência policial e a incoerência do governo do Ceará
Por Ana Letícia Lins*
Ao final da semana em que a Rede de Observatórios da Segurança, ao lado de outras 42 instituições, firmou um grupo de trabalho para debater a violência da polícia no Ceará, vivi de perto a truculência da Polícia Militar do Ceará. Durante uma manifestação de familiares do sistema prisional e organizações de Direitos Humanos, que aconteceu no dia 20 de novembro, em Fortaleza, os agentes de segurança responderam com violência a pessoas armadas apenas com faixas, cartazes e instrumentos musicais, que ressaltavam que nós, cearenses, somos contra a tortura e que vidas presas importam. Ter sido recebida na sede do Governo na mesma semana em que vi pessoas queridas sendo arrastadas na rua por PMs é uma marca presente, dolorosa e extremamente incômoda.
O Ceará tem assistido um aumento da violência policial nos últimos anos. Desde o início do trabalho da Rede de Observatórios da Segurança, em maio de 2019, denunciamos casos emblemáticos de violência envolvendo agentes de segurança pública: o desaparecimento forçado de Anderson Henrique, 20 anos, em Horizonte (CE), no dia 11 de junho de 2019 — ele segue desaparecido até o presente momento; o assassinato de Juan Ferreira dos Santos, de 14 anos, no bairro Vicente Pinzón, em Fortaleza (CE), no dia 13 de setembro de 2019; o assassinato de Mizael Fernandes, de 13 anos, em Chorozinho (CE), no dia 1º de julho de 2020; e, também, trouxemos a memória da Chacina do Curió, que deixou 11 vítimas na madrugada de 11 para 12 de novembro de 2015, e se tornou símbolo da luta das mães e familiares de vítimas de violência do Estado no Ceará.
Têm sido frequentes ainda as notícias que dão conta do envolvimento de agentes em grupos de extermínio, organizações criminosas para o tráfico e práticas de extorsão, além de vídeos e relatos de abordagens envolvendo tortura e/ou truculência. São alvos principais dessas violências os adolescentes e jovens negros, moradores das periferias. Continuamos a denunciar e cobrar respostas sobre esses casos, tentando garantir que não caiam em esquecimento e esse cenário não seja normalizado.
Foi neste contexto que a Rede se somou a outras 42 organizações em um documento que apresenta 11 solicitações para o Governo do Estado do Ceará, trazendo como tema a violência policial e medidas que garantam proteção, memória, justiça e reparação. Fomos uma das 6 pessoas recebidas pela Vice Governadora, Izolda Cela, no último dia 17, para tratar sobre a temática. Um dos saldos mais positivos do encontro foi o compromisso em realizar encontros trimestrais para o acompanhamento das solicitações, o que é muito importante para as vítimas e para as organizações da sociedade civil.
No entanto, no final da semana em que conseguimos firmar este compromisso, vivenciamos uma situação de terror e violência por partes de policiais militares do Batalhão de Choque que reprimiram com truculência e crueldade um ato de familiares do sistema prisional e organizações de direitos humanos, em Fortaleza. As ações registradas em filmagens e os relatos dos que estavam presentes dão conta de ações desproporcionais dos PMs, tendo estes, entre outras coisas, puxado uma mulher pelos cabelos quando ela estava de costas e caminhando no sentido contrário. Cenas de agressões contra militantes e religiosos, uso de spray de pimenta, bala de borracha, registro de PMs filmando/fotografando os que estavam presentes. Tudo isso contra um ato de aproximadamente 30 pessoas armadas apenas de faixas, instrumentos musicais e um megafone.
O saldo foi três pessoas negras, defensoras dos direitos humanos e envolvidas na luta pelo desencarceramento, detidas e levadas para um Distrito Policial. Tudo isso em um 20 de novembro, Dia da Consciência Negra. Como se não bastasse, o Estado ainda se sente confortável em acusar essas pessoas de desacato e desobediência, ainda que todas as imagens e relatos digam o contrário.
Cabe aqui chamar a atenção para o fato de que os PMs foram mais truculentos com as três pessoas negras detidas, reafirmando o caráter racista das práticas policiais, que não são inibidas por filmagem e exposição dos atos. Imagens de pessoas negras agredidas por agentes do Estado não são novidade, mas agora estão sendo filmadas, disseminadas e denunciadas em redes sociais.
Em virtude do silêncio dos governantes, como é o caso do Ceará, essas imagens acabam quase não tendo alguma efetividade nas tomadas de decisão. É de conhecimento a importância de uma fala pública que possa rechaçar esse tipo de acontecimento. Nós não temos tido isso no Ceará por parte do Governador Camilo Santana (PT). Nas denúncias frequentes que fazemos no âmbito da Rede, chamamos a responsabilidade do Governador, por sabermos que não é uma questão de alguns agentes ou um “caso isolado”, mas um problema estrutural. Os agentes envolvidos nas ações de ilegalidade precisam ser responsabilizados, mas o Governo também precisa assumir a responsabilidade do que está acontecendo.
O que nós vemos diante de todo o ocorrido é que o silenciamento persiste. A palavra de determinadas pessoas não vale de nada ou quase nada frente ao relato de um agente do Estado. As imagens das agressões perpetradas contra pessoas negras militantes de Direitos Humanos continuam a ser compartilhadas mas quase sem impacto nenhum no meio de um processo eleitoral fortemente marcado pelo debate vazio sobre a segurança pública, sem qualquer comprometimento real com as pautas que afetam grandes populações violentadas por dinâmicas do Estado e pelo racismo.
Queremos saber qual a resposta que o Governo do Ceará irá fornecer sobre esse acontecimento. Queremos e merecemos respostas enquanto pesquisadores da segurança pública e militantes dos Direitos Humanos. Cobramos, acima de tudo, reparação para as pessoas vítimas da violência do Estado. Seguimos denunciando e fornecendo toda a solidariedade aos três militantes negros violentados por PMs no dia 20 de novembro, em Fortaleza. Não será esquecido.
* Pesquisadora da Rede de Observatórios da Segurança e do Laboratório de Estudos da Violência (LEV) da Universidade Federal do Ceará (UFC).