Até quando as polícias do Rio vão descumprir a ADPF 635?
Por Silvia Ramos e Wellerson Soares
O silêncio da chegada de um novo dia no Complexo da Maré foi rompido pelo som do caveirão entrando na comunidade. Em mais um descumprimento claro de determinações apontadas na ADPF das favelas, dentre elas a não realização de operações policiais noturnas, caos, medo e mortes foram o saldo da entrada do Bope nas comunidades da Nova Holanda e Parque União. Aos 140 mil moradores das 16 favelas da Maré, o recado do governador Cláudio Castro é pânico e terror.
Por volta da meia noite, os primeiros sons dos disparos cortaram o céu de uma noite que parecia terminar tranquila na Maré. Até aquele momento, a comunidade vivenciava coletivamente um chá de bebê. Quem dormia a essa altura foi despertado por gritos de pânico e tiros a esmo. Aqueles que circulavam tranquilamente pelas ruas viram se materializar no mundo real um verdadeiro pesadelo.
A segurança pública no Rio de Janeiro tornou-se um caso complexo no cenário, sobretudo quando diferentes forças parecem agir de maneira independente, sem transparência e sem que haja o cumprimento de determinações judiciais. A Polícia Militar não informou o objetivo da operação na Maré. O fato é que, do ponto de vista efetivo da incursão, o saldo – apreensão de duas pistolas, dois carregadores, munição e embalagens de drogas – não justificou tamanho terror e nem o motivo de ela ter acontecido durante a madrugada. Além disso, a interrupção de serviços de educação e de saúde para milhares de pessoas torna a situação ainda mais grave. Ao todo, 23 escolas ficaram fechadas, deixando quase nove mil alunos sem aulas.
Já o governo do estado tenta emplacar a narrativa de que o Rio estaria recebendo uma onda migratória de criminosos, justificando assim operações aos montes e a produção de mortes em massa. O sinal de alerta na segurança pública do Rio está aceso.
Primeiramente porque as forças policiais foram responsáveis por um terço de todas as mortes violentas no estado em 2022, com a letalidade policial atingindo 1.327 pessoas. Isto é cinco vezes mais mortes do que as 256 produzidas pela polícia de São Paulo no mesmo ano e mais mortes do que o Ceará produziu em uma década (1.229) por intervenção policial.
Segundo, porque além de descumprir a ADPF 635, há uma tentativa de desqualificação da determinação do Supremo Tribunal Federal (STF), que condiciona a realização de operações a uma série de requisitos que vem sendo sistematicamente ignorados (obrigatoriedade de comunicação prévia ao Ministério Público, proibição de operações perto de escolas e unidades de saúde e outras) .
De acordo com o jornal Folha de S. Paulo, após a chacina que deixou 23 mortos na Vila Cruzeiro, em maio do ano passado, “representantes das polícias argumentaram que a operação tinha como objetivo prender criminosos de outros estados que haviam se mudado para o Rio motivados pela decisão do STF”. Por entender que a determinação impede a polícia de “combater o crime organizado”, o governo do estado, em um sinal claro de insubordinação, desobedece as diretrizes da ADPF e impõe operações policiais como se não houvesse qualquer tipo de restrição, tendo Cláudio Castro no currículo três das cinco mais letais chacinas produzidas no estado: Jacarezinho (maio 2021), Complexo da Penha (maio 2022) e Complexo do Alemão (julho 2022).