Chacina do Curió: “sobrevivi, mas senti como se eu também tivesse morrido”
Em depoimento exclusivo para a Rede de Observatórios, um sobrevivente da Chacina do Curió, que completou seis anos em 2021, relata a noite do crime, que vitimou 11 pessoas entre 11 e 12 novembro de 2015, e conta como leva a vida depois de ser vítima de agentes do estado. Policiais militares provocaram uma série de mortes na região da Grande Messejana, em Fortaleza- CE, em retaliação a um latrocínio ocorrido no mesmo dia e a expulsão de um policial de casa na semana anterior. Nenhum dos mortos tinha envolvimento com qualquer dos casos.
As histórias de vida Antônio Alisson Inácio Cardoso (17), Jardel Lima dos Santos (17), Álef Sousa Cavalcante (17), Marcelo da Silva Mendes (17), Patrício João Pinho Leite (16), Jandson Alexandre de Sousa (19), Francisco Enildo Pereira Chagas (41), Valmir Ferreira da Conceição (37), Pedro Alcântara Barroso (18), Marcelo da Silva Pereira (17), Renayson Girão da Silva (17) e Valtermberg Chaves Serpa são contadas no livro Onze, lançado neste mês e dispónivel em audiolivro. Mas a história de um sobrevivente dessa barbárie, que por razões de segurança prefere não se identificar, contamos aqui:
Para quem sentiu na pele cada segundo de tensão e agonia é algo quase indescritível. Em uma ação repentina, sem aviso, perdi 21 anos da minha vida e quatro amigos. Eles chegaram de repente, simulando uma abordagem, nos colocaram de joelhos e em seguida, começou uma chuva de balas contra nossos corpos. Meu corpo parou de me responder, minha visão ficou turva, quando dei por mim já estava no chão, sentindo o frio me abraçar. Olhando dali os corpos sem vida dos meus amigos, eu queria gritar, me levantar e correr, mas nenhuma palavra saia da minha boca, não sentia mais nem meu corpo.
Quinze dias depois, lá estava eu, numa cama de hospital, entubado, sem saber ao certo o que havia acontecido. Por vários dias depois de acordar de um coma induzido, só podia falar um pouco e não podia mover um dedo, o meu corpo estava tão inchado e pesado que eu não tinha forças. Sofri ataques de pânico durante a noite e sentia uma agonia constante por não saber a situação do meu corpo. Até que um dia o fisioterapeuta e as enfermeiras me colocaram sentado e pude ver um braço engessado, por estar todo destruído, cicatrizes enormes pelo corpo decorrente de perfurações e várias cirurgias. Foi nesse exato momento em que vi que eu também havia morrido. Aquela pessoa que estava sentada ali, sendo segurada pelas enfermeiras, não era mais eu.
Minha recuperação no hospital foi até o dia 31 de dezembro daquele mesmo ano. Fora dele foram mais dois anos. Um período em que senti dores que nunca havia sentido nos meus 21 anos, eram constantes e diárias. Eu estava afastado da família, dos outros amigos e em um luto interminável. Eles mataram meus amigos, me deixaram em um estado terrível para qualquer jovem com sonhos e planos.
Atualmente com um braço esquerdo praticamente inutilizável, órgãos internos danificados, a perna esquerda dormente e incontáveis cicatrizes, eu tento seguir minha vida da forma que é possível. Porém, a tensão continua, porque como sabemos a nossa justiça é demorada. Seis anos se passaram e nenhuma sentença foi concluída, vivemos com medo porque eles estão aí. Se foram capazes de tal atrocidade, em nossas mentes sempre esperamos o pior novamente. Como se não bastassem todas as sequelas em meu corpo e vida, o medo se faz presente todos os dias.
Meu maior desejo hoje é que eu não acorde um dia e veja na TV que outros jovens tiveram suas vidas ceifadas como os meus amigos tiveram.
Um Sobrevivente.