Como a segurança foi terceirizada no Governo Bolsonaro
Por Ricardo Moura*
O Sistema Único de Segurança Pública (SUSP) completou três anos de forma melancólica. Raul Jungmann – ex-ministro da Segurança Pública no Governo Temer, quando o SUSP foi lançado – apresentou, em seu perfil no Twitter, um balanço preocupante sobre o modo como a política pública que previa a integração e o aprimoramento das ações na área da segurança foi abandonada no Governo Bolsonaro. “Hoje [11 de junho] o Sistema Único de Segurança Pública completa três anos de existência. Nada a comemorar. A grande conquista em defesa da vida de todos nós e contra a violência e a criminalidade, jaz insepulta pelo atual governo”.
Raul Jungmann prossegue: “O SUSP foi concebido para tirar a segurança brasileira das trevas e dar-lhe transparência, eficácia e coordenação entre união, estados e municípios, articulando polícias, justiça, ministério público, Forças Armadas, ONGs e universidades num esforço único e inédito contra o crime. O SUSP ainda fixava metas nacionais de redução de homicídios, possuía um sistema de auditoria interna independente, organizava uma ouvidoria e corregedoria nacionais e criava um conselho nacional de segurança, a ser replicado por estados e municípios”.
Muito pouco, quase nada, do que previa o SUSP foi colocado em prática, como pode ser observado no relato do ex-ministro. Em vez de seguir a trilha do que já havia sido estabelecido como uma política pública consolidada, o presidente Jair Bolsonaro e seu então ministro da Segurança Pública, Sergio Moro, optaram por um plano ambicioso de segurança municipal, cuja meta era abranger as 120 cidades mais violentas do Brasil.
Lançado em agosto de 2019 como um projeto-piloto, o “Em Frente Brasil” foi descontinuado após um ano e oito meses. A iniciativa não avançou além dos primeiros cinco municípios escolhidos a partir dos indicadores de violência: Goiânia (GO), Ananindeua (PA), Cariacica (ES), Paulista (PE) e São José dos Pinhais (PR). Os recursos atrasaram, os resultados não vieram e hoje não se fala mais em um programa nacional de segurança pública no Governo Federal.
Enfrentar um tema tão complexo quanto a violência urbana exige planejamento, articulação e capacidade de gestão. Em vez disso, o caminho mais fácil e perigoso foi adotado: a lei do salve-se quem puder.
Em um artigo sobre a lógica política bolsonarista, o cientista político Miguel Lago afirma que a sociedade almejada pelo presidente possui um forte componente pré-hobbesiano, na qual “os mais fortes mandam e podem recorrer a qualquer recurso para fazer valer o gozo de seus impulsos”. Em nome da liberdade individual, termo sempre presente nos pronunciamentos oficiais, pode-se fazer absolutamente tudo, sem qualquer espécie de restrição. Daí o boicote às máscaras, às fiscalizações ambientais, às multas de trânsito e aos limites da atuação policial, como pode ser visto na defesa intransigente feita pelo Governo ao excludente de ilicitude.
Os beneficiários de toda essa liberdade de ação na área da segurança pública, contudo, são bem definidos. Não é toda pessoa que possui essa capacidade de agir impunemente, mas apenas os “cidadãos de bem”. Nessa visão de mundo, pertencer a uma classe social determinada representa estar acima das leis ou, ao contrário, ser um risco permanente à ordem pública. Trata-se da lógica do “nós”, quem está do lado do bem, contra “eles”, ou seja, todos aqueles que encarnam algum grau de ameaça à ordem pública.
A divisão da sociedade entre “cidadãos” e “vagabundos” não é uma novidade. Essa concepção estreita e antagônica do mundo social remonta há décadas, desde que o processo de urbanização surgiu no Brasil. A diferença do Governo Bolsonaro nesse quesito reside no fato de que a solução para esse impasse virá não apenas pelas mãos dos agentes de segurança, instrumento tradicional de repressão dos governantes contra as “classes perigosas”, mas do recrutamento de indivíduos e grupos armados privados.
Armar setores específicos da população tem sido a principal política de segurança privada (e aí não podemos mais usar a expressão “segurança pública”) deste governo. A frustração de Raul Jungmann descrita no início da coluna é justificável, mas ela só é pertinente no interior de uma concepção de uma gestão que ambicione realizar algo dentro dos parâmetros legais, constitucionais e políticos.
Em uma situação como essa, podemos afirmar que existiria incompetência ou até mesmo certa ineficácia nas ações. Quando se trata de uma decisão política, de um projeto de poder, o abandono do SUSP se explica perfeitamente bem, haja vista que a ideia de um “sistema único de segurança pública” soa destoante de um cenário no qual as elites estão se armando de forma indiscriminada e na qual os freios às ações violentas dos agentes públicos são quase inexistentes, dada a ausência de qualquer reprimenda estatal, nem sequer ao menos um lamento, sobre as vidas ceifadas durante as operações policiais. Na lógica de guerra, são apenas danos colaterais. Ao contrário dos esforços privatizantes de Paulo Guedes na Economia, a segurança no Brasil obteve mais êxito em seu processo de privatização. Há quem chame esse processo de terceirização da sociedade, como faço aqui. Mas há quem possa chamar também o cenário que vivemos de barbárie.
** Ricardo Mouro é jornalista, pesquisador e coordenador da Rede de Observatórios da Segurança no Ceará. Texto originalmente publicado no Jornal O Povo.