‘Minha filha foi assassinada por um policial militar enquanto trabalhava’
Por Sandra Sales*
Minha filha levou um tiro fatal pelas costas e já caiu morta, sem qualquer direito de defesa. Ingrid Mayara tinha 19 anos, trabalhava, estudava, estava fazendo discipulado para ser obreira da Igreja e foi vítima da chacina do bairro Ellery, em Fortaleza, que completa oito anos hoje. Todo o seu currículo não a isentou de ser assassinada em um bairro da periferia de Fortaleza, no dia 26 de janeiro de 2013, vítima de uma ação do estado. Minha filha foi assassinada por um policial militar enquanto trabalhava. Ingrid era vendedora ambulante no pré-carnaval da Praça Manuel Dias Macedo quando a polícia atirou contra as pessoas que estavam na festa. Me chamo Sandra Sales, sou mãe da Ingrid Mayara e luto por justiça em um estado preconceituoso, genocida e homicida.
Minha filha deixou uma bebê de 1 ano e 8 meses. Enquanto Ingrid estava no chão, morta por um tiro da PM, seu peito escorria leite e sua bebê chorava para mamar. Minha neta, que se tornou filha, só dormia depois que mamava. Mal sabia que não ia mais poder mamar no seio de sua mãe. O Estado fez, assim, várias vítimas de uma só vez. A filha de Ingrid teve que mamar no peito de vizinhas que amamentavam. Minha cunhada chegou a ser “mãe de leite” dela. Muitas vezes ela recusava, chorava um choro de dor, pois sabia que não era o peito da sua mãe. Ela só chorava, ela só queria sua mãe.
Eu pedi a Deus que tivesse misericórdia de mim. Estava cansada, triste, abatida, e ainda sem acreditar em toda aquela tragédia. Em uma noite, deitei com ela e dei meu peito para ela. Agarramos no sono e, quando acordei, ela estava mamando em mim. E foi assim que ela sobreviveu a toda essa desgraça. Apesar de todo sofrimento, hoje está com 9 anos e é uma menina amável, doce, inteligente, educada. No entanto, sente a fragilidade, tem medo do escuro, entra em pânico quando eu demoro a chegar em casa. Menos de dois meses após o assassinato de Ingrid, minha neta perdeu também o seu pai. Ele foi assassinado na mesma rua em que Ingrid morreu.
Nesse cenário, depois de tantas tragédias, fui embora por um tempo e só decidi retornar ao bairro quando tomei a decisão de buscar por justiça para a minha filha. Na época do assassinato, eu era uma pessoa proativa e trabalhava como gerente comercial de um hotel na Praia do Futuro. Eu era saudável, dinâmica, alegre. Nunca imaginei que um dia teria depressão, problemas de pressão alta, ossos fragilizados e estaria fazendo uso de medicamentos de uso controlado. Isso foi o que o estado nos trouxe.
O estado não se responsabiliza, nem os policiais foram presos. São 8 anos de luta sem resposta. Fui para muitos locais, muitas caminhadas. Muitas das vezes saí sem almoçar, sem transporte para voltar. Atualmente faço parte do grupo de mães vítimas do Estado, organizadas nacionalmente, além do grupo de Mães da Periferia do Ceará, Movimento Cada Vida Importa e Fórum Popular de Segurança Pública do Ceará. Felizmente temos parceiros que nos acompanham e nos auxiliam!
Quero justiça por tudo que estou passando mas, principalmente, pela vida da minha filha, Ingrid Mayara. Essas balas só acertam pobre, preto e favelado. Se você não correr atrás, esses crimes ficam na impunidade.
* * Sandra Sales é mãe de Ingrid Mayara, membra do grupo Mães da Periferia do Ceará, do Movimento Cada Vida Importa e do Fórum Popular de Segurança Pública do Ceará.