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Nos bastidores de um julgamento: mães e movimentos sociais unem voz por justiça pela chacina do Curió

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event 4 de outubro de 2023
inventory_2 Manifestações

Por Fernanda Naiara*

Desde o bairro da grande Messejana, em Fortaleza, o movimento Mães do Curió faz uma revolução pela memória dos familiares assassinados pelo Estado no episódio que ficou conhecido como Chacina do Curió. Pela força dessas mulheres, junto ao Ministério Público e a movimentos sociais que a Justiça do Ceará deu início a série de julgamentos dos acusados de participação no crime. 

Álef, Antônio Alisson, Francisco Elenildo, Jandson, Jardel, José Gilvan, Marcelo, Patrício, Pedro, Renayson e Valmir jamais foram esquecidos por quem vivenciou as horas de terror planejado que causaram suas mortes. A memória dos entes queridos é levada à frente pelas ações políticas do movimento das mães, de forma a questionar o motivo de um servidor público ter o direito e as condições para matar às nossas custas. O orçamento público é gasto com armas, munições e aparelhos que se voltam contra a população das periferias.

A terceira maior chacina do Ceará teve 45 policiais militares denunciados pelo Ministério Público: 44 tornaram-se réus; 10 foram impronunciados no decorrer do processo; 34 continuaram respondendo, divididos em três processos – desse total, três respondem na Vara de Auditoria Militar e um faleceu. Ou seja, 30 acusados permaneceram respondendo pelos crimes na 1ª Vara do Júri de Fortaleza. 

 

Em 2023 foram realizados três julgamentos, com 20 dos 30 acusados já julgados: 

20 de junho

No julgamento 1, oito réus foram acusados. O Conselho de Sentença da 1ª Vara do Júri de Fortaleza condenou Antônio José de Abreu Vidal Filho, Marcus Vinícius Sousa da Costa, Wellington Veras Chagas e Ideraldo Amâncio. Cada um deles foi sentenciado  a 275 anos e 11 meses de prisão em regime inicialmente fechado e tiveram a prisão provisória decretada. Três aguardam recursos em instâncias superiores e um morreu.

29 de agosto

No julgamento 2, oito dos 15 acusados que integram o processo foram absolvidos. Eles tiveram negadas as autorias de todos os crimes, de todos os episódios de que eram acusados. Os demais acusados aguardam recursos em tribunais superiores. Na medida em que forem concluídos e, caso seja mantido o entendimento, outras datas devem ser designadas para levá-los a julgamento.

12 de setembro

No julgamento dos oito réus que compõem o processo 3, apenas dois foram condenados. José Oliveira do Nascimento teve pena de 210 anos e 9 meses de reclusão e José Wagner Silva de Souza, de 13 anos e 5 meses. Antônio Carlos Matos Marçal foi remetido a ser julgado pela Vara de Auditoria Militar e pode ter absolvição em relação aos crimes. Os outros acusados foram absolvidos de todas as acusações. 

“Foi uma luta muito grande de quase oito anos na espera por esses julgamentos. Ter um veredito favorável à periferia foi um marco no país e aqui no Ceará. Essa vitória é de todo o povo, das Mães do Curió, dos movimentos sociais e das periferias que sofrem”, declarou dona Edna Carla, um dos expoentes da luta. 

Para nós, enquanto sociedade civil organizada em instituições ou movimentos sociais que tem uma perspectiva a partir da defesa dos direitos humanos, o julgamento foi e é histórico para o país. Não se trata apenas de um ato simbólico, mas de um passo importante nessa caminhada por justiça. 

Estivemos em vigília em uma rede de solidariedade que surge para apoiar as pessoas mais impactadas com os acontecimentos da madrugada do dia 11. Mas também para reafirmar a necessidade de pensar uma sociedade em que a violência não seja a tônica, mas sim uma construção a muitas mãos do sentido de justiça e solidariedade.

O júri da chacina do Curió coloca em evidência uma fragilidade da judicialização do caso, uma vez que os oficiais e superiores dos policiais envolvidos não foram sequer acusados. Na noite do dia 11 de novembro de 2015, havia comando responsável pelas viaturas? Certamente sim. É a partir daí que questionamos uma política de segurança pública que opera na lógica do extermínio. A busca por justiça tensiona um modelo político que não apresenta mudanças estruturais. É cobrado, portanto, nesse momento político do estado do Ceará, a justiça e reparação à uma política de extermínio que renova uma dívida impagável todos os dias. 

Aprendemos com o júri que a busca por justiça constrói caminhos em redes políticas e afetivas. Para uma familiar ou sobrevivente da Chacina, não estar sentada no banco dos réus representa mais do que o cumprimento de leis e rituais jurídicos, mas o reconhecimento de injustiças cotidianas e sistemáticas em que elas são vitimadas. Foram condenadas pela justiça do Ceará práticas de tortura física e psicológica contra sobreviventes. A luta pela humanização das vidas das periferias de Fortaleza move a indignação que alcançou esse julgamento histórico no Ceará. 

Em cada julgamento, mães e parentes, movimentos sociais, coletivos e sociedade civil uniram-se em luta, as articulações ganharam corpo e deram voz a um protesto em uníssono: transformamos o luto em luta. O direito à memória é conquistado pelas nossas próprias estratégias de enfrentamento, vigília e solidariedade. 

Fernanda Naiara é pesquisadora do Observatório do Ceará*

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