O marco temporal é o fio da navalha para povos originários
Por Wellerson Soares
A semana do meio ambiente marca os esforços de conscientização e preservação da natureza e dos recursos naturais. Mas também coloca em discussão o julgamento no Superior Tribunal Federal (STF) sobre o marco temporal de terras indígenas, tema que divide opiniões e é central para existência e garantia de direitos aos povos tradicionais.
A ação no STF é julgada com base no caso dos povos Xokleng, Kaingang e Guarani com a terra Ibirama Laklaño, em Santa Catarina, e servirá como diretriz para todos os processos de demarcação no país. Esses indígenas foram perseguidos ao longo de anos e lutam pelo direito às terras da Reserva Biológica dos Sassafrás.
Em 2013, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) aceitou a proposta de reintegração de posse e julgou que os Xokleng não tinham direito à terra por não estarem em disputa jurídica pelo território em 5 de outubro de 1988, data da publicação da Constituição Federal. A Funai recorreu da decisão e o caso foi parar no Supremo.
O marco temporal é uma proposta para demarcação de novas terras indígenas. A tese afirma que só tem direito os povos originários que já tradicionalmente ocupavam terrenos em outubro de 1988. O critério desconsidera as comunidades que foram expulsas naquela data. O PL 490/2007, apresentado pelo então deputado federal, Homero Pereira, busca instituir que somente os povos presentes fisicamente em suas terras ancestrais no dia da promulgação de 88 teriam direito sobre os territórios.
No entanto, a constituição não estipula um limite de tempo para estabelecer se o território pertence ou não aos indígenas. A determinação diz apenas que seja comprovada a ligação ancestral de determinado povo originário com a terra. Os grupos têm o direito assegurado sobre regiões tradicionais e por isso são considerados por lei os naturais donos, além da demarcação de todas as terras ocupadas por eles. No Brasil, cerca de 680 territórios indígenas estão regularizados e outros 794 estão em diferentes fases de demarcação. Apenas Michel Temer e Jair Bolsonaro não demarcaram em seus mandatos.
Para especialistas e defensores da causa indígena, o marco também pode ser usado para travar demarcações, porque em muitos casos é difícil provar a existência dos povos nos territórios em 1988. Com isso, locais desocupados ou ocupados por outras pessoas naquela data não podem ser demarcados como terras indígenas e serem considerados propriedade privada ou do Estado. Além disso, existe o temor de que demarcações já feitas sejam canceladas, caso a tese seja validada pelo STF.
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) alerta que a tese do marco temporal é um retrocesso aos direitos dos povos indígenas e uma afronta à sua dignidade e sobrevivência: “Muitas comunidades indígenas foram expulsas de suas terras durante a ditadura militar e só conseguiram retornar após a data estabelecida. A aprovação pode resultar em graves violações dos direitos humanos desses povos”.
Do outro lado, favorável à tese, estão os ruralistas, que alegam temor por desapropriações em caso de invalidação do marco no Supremo. A aprovação concederia-lhes segurança jurídica ao direito de propriedade privada. Esse grupo político já conquistou duas vitórias importantes até o momento: a aprovação da MP dos Ministérios, que transfere a demarcação das terras do ministério dos Povos Indígenas para o ministério da Justiça e Segurança Pública, e a aprovação do marco temporal na Câmara.
Publicamente, as ministras dos Povos Indígenas e do Meio Ambiente, Sônia Guajajara e Marina Silva, respectivamente, se posicionam contrárias às tentativas de esvaziamento de suas pastas e tentam um posicionamento mais presente do presidente Lula no caso.
O que está em jogo no STF é muito mais do que apenas garantir o direito à terra. É também pela preservação do meio ambiente e pela vida no planeta. Ser favorável à vontade dos ruralistas e ao marco temporal pode representar danos irreparáveis ao ecossistema. De acordo com o Relatório Anual de Desmatamento no Brasil, do Projeto MapBiomas, a agropecuária foi responsável por 97% do desmatamento brasileiro. Em contrapartida, territórios indígenas perderam apenas 1% de sua vegetação nativa nos últimos 30 anos, estando entre os territórios mais protegidos e conservados do país.