Ogum e São Jorge contra o Racismo Religioso
Ogunhê! Salve Jorge! As festas de São Jorge e Ogum são tão representativas para a população carioca que 23 de abril se tornou feriado. Nesse dia, tem batuque, tem missa, tem samba, tem feijoada, tem muita fé. O sincretismo religioso faz com que o santo e o orixá se aproximem a ponto de muitos acharem se tratar da mesma divindade. Mas não é bem assim, essa foi uma ferramenta utilizada pelos escravizados para que pudessem preservar sua fé. O que trouxe momentos de celebração conjuntos como o dia de hoje, mas também a demonização das entidades de origem africana devido ao racismo religioso.
A Rede de Observatórios conversou com Pai Caio de Xangô, dirigente da Tenda de Umbanda Falangeiros de Luanda, situada na região central do Rio e coord. do Coletivo Antirracista Kalundú. Ele nos explicou sobre o simbolismo do dia 23 de abril e também falou sobre como a data pode ser usada contra a intolerância religiosa fundamentada no racismo religioso. Confira:
Como enxerga o sincretismo entre a figura de São Jorge e Ogum e a tradição do dia 23 de abril no Rio de Janeiro?
São Jorge é um santo católico e Ogum é uma deidade iorubá do povo Nagô – que hoje conhecemos como Nigéria. Quando nós falamos de São Jorge e Ogum, desse sincretismo e dessa associação, nós falamos dos nossos mais velhos, dos nossos ancestrais recém-chegados de África ou nascidos aqui no Brasil, que para preservar os nossos saberes, nosso conhecimento, fizeram essas associações de suas divindades com os santos que aqui eram cultuados e que tinham festas celebradas sazonalmente. Dentre elas, nós vamos ter os principais santos católicos e a gente vai ter alguns santos associados a alguns Orixás. Ogum é o senhor da forja, que é aquele que nos ensina a produzir material para o arado, que nos ensina a manipular os metais, ele que é o senhor da inovação tecnológica, ele vai à guerra para promover a paz aos seus. E nessa associação a gente vai se remeter a São Jorge no aspecto do santo guerreiro.
O sincretismo é um tecnologia utilizada para que segredos, ciências, saberes, sejam passados aos herdeiros em momentos como o que a gente viveu do processo da escravidão. Existem outros processos de sincretismos estabelecidos, inclusive entre os orixás e os inquice e entre os orixás e os voduns, mas esse sincretismo com os santos católicos se deu de uma maneira muito mais violenta. E esse sincretismo traz momentos de festa, mas também momentos de dores, como a demonização das divindades de África aqui no Brasil.
Mesmo com a tradição da festa entre os cariocas, existe a demonização do orixá. Poderia explicar como e porque isso acontece?
Isso se dá por conta do racismo que existe no Brasil e Ogum é uma deidade que veio com os nossos ancestrais que foram traficados para cá. Apesar da nossa língua ser uma mistura do português com o iorubá, apesar da nossa culinária ser uma herança dos quilombos e das experiências bantu-ameríndias, apesar da nossa arquitetura com as adinkras do Rio Antigo serem heranças afrodiaspóricas, existe um ódio ao povo preto que foi herdado do Brasil colonial. E isso se manifesta no extermínio do povo preto e principalmente da juventude preta. Então, quando a gente fala de religiões afrodiaspóricas a questão é justamente o afro que está nessas religiões. Existe a demonização de um orixá africano. Se Ogum fosse um deus grego ou nórdico com certeza a relação seria diferente. Mas a questão é que se trata de um orixá africano. Então esse ódio herdado do período colonial que se manifesta na caça ao povo preto também atua na demonização de Ogum.
Como a data pode ser usada contra a intolerância religiosa?
No dia 23 de abril, por ser uma data de culmina nos festejos de um santo catolíco muito popular que é são jorge e que também culmina nos festejos de um orixá africano muito popular que é Ogum, a gente vai ter um único momento de dois festejos de duas deidades distintas mas que se relacionam por conta dessa herança do sincretismo. No mesmo dia, a gente vê tanto os povos de terreiro em festa como a igreja católica em comemoração. A gente pode fazer desse dia 23 de abril, que é um dia de grande mobilização social, um momento também de debate e profunda discussão sobre o papel das igrejas, o papel dos terreiros, sobre o combate do racismo religioso e da gente identificar que nem todas as religiões sofrem intolerância de forma igual. A gente raramente vê igrejas católicas, evangélicas, centros espíritas kardecistas sendo violentados, mas a gente vê rotineiramente terreiros de umbanda, candomblé, espaços de saberes de herança afrodiaspóricas sendo agredidos. Então, quando a gente fala no Brasil de intolerância religiosa, na verdade a gente está falando de racismo religioso.
O dia 23 de abril é um dia importante para a gente falar que Ogum é um orixá preto, africano, que é o senhor da tecnologia, que é aquele que na guerra nos traz a paz, que apesar de não ser a mesma figura de São Jorge é uma figura de tamanha importância civilizacional para a humanidade, para a África e para o Brasil. A gente precisa fazer do dia 23 de abril um dia de profundos debates sobre o racismo religioso e de inúmeras ações, eventos, espaços, público para que a gente possa levar nossos saberes ancestrais para além de uma visão folclórica ou mitológica.