Os efeitos da pandemia sobre o mercado da droga em Fortaleza
Por Ricardo Moura*
Como toda atividade humana, o comércio ilegal de entorpecentes também sente os efeitos da pandemia do Covid-19. Há algumas semanas, usuários de maconha dão notícia sobre a falta do produto nos pontos de venda. Desde o início do ano, essa queixa vinha sendo uma constante nas redes sociais ou em conversas informais. As medidas de isolamento social, a exemplo do fechamento das divisas entre estados, fizeram com que a oferta da droga se reduzisse ainda mais.
Embora não haja uma estatística oficial, estima-se que a maior parte da maconha consumida em Fortaleza seja oriunda do Paraguai. Grosso modo, há duas versões básicas do produto: o “prensado”, de coloração mais escura e sem tanto cuidado no preparo, e a “solta”, mais esverdeada e tida como mais pura. No jargão dos usuários, a maconha de maior qualidade é chamada de “floripa”, embora o trajeto que percorra para chegar ao Ceará nem de longe passe por Santa Catarina.
Com o objetivo de compreender o impacto das medidas de isolamento social sobre o consumo da maconha, a coluna encaminhou um formulário online para pessoas que fazem uso do entorpecente sob a condição de anonimato. O questionário obteve 62 respostas. Vamos aos dados. A maconha de origem paraguaia é a mais consumida pelos entrevistados, com 57%. Na sequência, com 19%, vem o skunk, uma versão mais potente da droga que possui elevado teor de tetra-hidrocanabinol (THC), o componente ativo da cannabis.
Sobre os impactos das medidas de isolamento, destacam-se o alto valor cobrado e a dificuldade em encontrar o produto: 93% dos respondentes disseram que a rotina de aquisição da maconha foi alterada por causa de algum desses fatores. Para 24% dos entrevistados, o produto não é mais encontrado nos pontos de venda, enquanto 72% das pessoas ouvidas afirmam que o preço da grama aumentou mais de 50%.
Durante a quarentena, a qualidade do “prensado”, cuja fama já não era boa, parece ter piorado: “O que estão vendendo é ridículo. Nos melhores casos é o típico prensado de sempre, marrom e cheio de amônia, mas recentemente tem rolado um prensado com cheiro de fezes, podre. Quem comprou jogou fora porque não tinha condição de fumar aquilo”, relata um respondente.
A redução drástica na oferta fez com que 43% das pessoas entrevistadas deixassem de fumar maconha durante o isolamento. Por sua vez, 45% dos respondentes afirmam que estão “dando um jeito” para manter o consumo e 11% alegam terem estocado o produto antes do decreto do isolamento, em março.
A dinâmica do crime organizado também tem influenciado no consumo, como é possível perceber por alguns relatos. Quem tem mais poder aquisitivo está sentindo menos os efeitos da escassez. A situação é descrita de forma detalhada por um dos entrevistados: “A oferta de maconha caiu vertiginosamente, sobretudo a de tipo prensada. Poucos lugares em Fortaleza estão vendendo. O último a resistir é o Lagamar, porém enfrenta uma guerra local pelo controle do tráfico. Muita gente não está indo lá por temer a situação. A ‘rede do solto’ se articulou com antecedência à quarentena. Todos estão com estoque para no mínimo um mês”.
Uma usuária acrescenta: “Depois de quase um mês com o estoque bem baixo de um prensado ruim, temos agora uma maconha de qualidade boa rodando, mas está 100% mais cara. Para os usuários mais frequentes, acredito que a maconha ajuda muito a enfrentar o isolamento. A maioria dos usuários esporádicos não está fumando por causa das dificuldades no acesso. Quem tem dinheiro consegue seguir seu consumo mais tranquilamente, pois podem pedir entrega, pagar transporte e fumos caros”.
Como se pode observar nos depoimentos, o uso de entorpecentes precisa ser debatido de forma franca e sem preconceitos. O que deveria ser abordado como um caso de saúde pública tornou-se uma fonte privilegiada de enriquecimento para toda uma lucrativa cadeia criminosa que reúne barões do tráfico, agentes públicos e membros “respeitáveis” da sociedade.
Muitos dos males atribuídos ao consumo de drogas ilícitas, em especial a maconha, derivam justamente da imposição de um modelo baseado em uma estratégia anacrônica e ineficaz de “guerra às drogas”. Da forma como é constituído hoje, o sistema de justiça criminal é mais um vetor para o incremento da violência letal no país, bem como do encarceramento em massa, contribuindo de forma decisiva para que sejamos um dos países com maiores taxas de homicídios no mundo.
A postura oficial de criminalização do usuário em nada ajuda a superar o problema da drogadição, além de ser uma decisão que segue na contramão do que vem ocorrendo no mundo. Para que esse problema seja superado, o primeiro passo a ser dado é mudarmos a forma como compreendemos a presença das drogas na sociedade.
*Pesquisador do Observatório da Segurança Ceará. Esta coluna foi publicada originalmente no jornal O Povo