Rede de Observatórios de Segurança

Pesquisadores lançam rede fluminense para atuação conjunta

event 2 de julho de 2019

Objetivo é denunciar violência estatal e defender políticas públicas voltadas aos direitos humanos

A criação da Rede Fluminense de Pesquisas sobre Violência, Segurança Pública e Direitos Humanos, ontem, foi marcada por emoção, indignação e alguma esperança. Emoção, motivada pela visão do salão nobre do IFCS, na UFRJ, lotado por mais de 120 pesquisadores e ativistas, das mais variadas instituições, idades e origens. Esperança pela constatação de que a reunião, como afirmaram vários dos que se pronunciaram, representou um momento  de superação de divergências em nome de uma atuação conjunta em favor de valores republicanos e humanos, e contra políticas em curso no âmbito estadual e federal.

A indignação estava em todos os discursos que abordaram ações do governo estadual e federal. “Nosso estado está entregue a um governador que tem assumido posições criminosas e deveria ser por isso responsabilizado nos tribunais nacionais e internacionais”, disse Luiz Eduardo Soares, lembrando que, nos primeiros cinco meses deste ano, 729 pessoas morreram em decorrência de ações policiais.  Vários dos pesquisadores presentes propuseram uma atuação da Academia explicitamente vinculada à defesa de direitos e de valores democráticos.

“É hora de vincularmos mais claramente os nossos estudos a alternativas de políticas capazes de preservar a democracia e os direitos que nós conquistamos desde 1981”, disse Michel Misse, coordenador do NEC-VU (Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana) da UFRJ.

O pacote proposto pelo ministro Sergio Moro pode ampliar a letalidade das ações das forças de segurança estatais, acreditam os integrantes da Rede

Silvia Ramos, coordenadora da Rede de Observatórios da Segurança e uma das articuladoras do encontro, concordou: “Neste momento de radicalização de narrativas e práticas violentas, este é um campo que precisa se articular mais”. “O que faltava à gente era um trabalho em rede. Sem abrir mão das diferenças, chegou o momento de brigar nessa coalizão para que a gente saia dessa situação triste em que chegamos”, disse Daniel Cerqueira, do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). Marcelo Burgos, da PUC-RJ, apoiou a iniciativa: “Encaro a rede como uma inovação necessária. Estamos em um momento de um recuo perigoso, que faz com que a sociedade opere com fatalismo. Vejo com muita esperança o apoio da rede”.

Jacqueline Muniz, da UFF, listou dezenas de iniciativas e projetos, um vasto conjunto de ferramentas de qualificação das políticas de segurança e de proteção da democracia e dos direitos. “Um relicário luxuoso”, como ela descreveu, construído ao longo de décadas pela Universidade, sociedade civil, comunidades populares e movimentos sociais e atores governamentais.

“Está na hora de retornamos  à militância. A militância acadêmica, a militância que tem um lado, sim, que é o lado da dignidade,  dos direitos civis e da cidadania. É desse lado que podemos vencer esse discurso que fabrica medo para vender proteção, esse discurso que produz regimes do medo e práticas de exceção, esse discurso fácil que governa com o crime e produz trajetórias eleitorais.  Temos acervo, temos competências, temos capacidade”, conclamou a pesquisadora, sob aplausos da plateia.

“Estou aqui com toda a bibliografia da segurança pública”, comentou um participante, ao ver que se sucediam ao microfone ou se espalhavam pela sala também Luiz Antonio Machado, Marcelo Burgos, Silvia Ramos, João Trajano, Julita Lemgruber, Cecilia Minayo, Alba Zaluar, Barbara Mourão, Yolanda Catão, Carolina Grillo, entre muitos outros.

O encontro também reuniu responsáveis por pesquisas em instituições governamentais, como Joanna Monteiro, do Ministério Público do Rio de Janeiro, Pedro Strozemberg, ouvidor da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, e o promotor e professor Tiago Joffly. Andrea Amin, coordenadora do GAESP, do MPRJ, enfatizou a importância da mobilização da sociedade para impulsionar a atuação do MP no combate a violações de direitos: ‘Criem o desconforto institucional. A gente precisa se sentir desconfortável. Demandem. Tendo dados, tenham pesquisas,  tragam. Isso vai  gerar um protocolo e obrigatoriamente terá de levar a alguma decisão.”

Na plateia, também estavam reunidos integrantes de organizações da sociedade civil do Rio – algumas das quais atuam também na produção de conhecimento. Entre elas, o ISER, o Observatório de Favelas e a Casa Fluminense. Itamar Silva, do Morro Santa Marta, comemorou a participação de ativistas, que “também pensam a segurança e buscam qualificar o ponto de vista dos moradores”.  Já Fransérgio Goulart, do Fórum Grita Baixada, ressaltou a importância de estudar a expansão das milícias no estado e observou:  “Ao olhar essa sala, vemos poucos negros e favelados presentes no campo da pesquisa. Isso é um desafio que temos de enfrentar na produção do debate de segurança pública.”

Marcele Decothé, estudante: Rede precisa atuar contra projetos de lei anti-democráticos

Marcele Decothé, estudante do IFCS, também ocupou o microfone. Representante de uma nova geração de pesquisadores, que ingressou na universidade através da política de cotas, ela destacou a importância de atuar no Legislativo. “Peço que essa rede também esteja atenta a construir a disputa no parlamento” contra propostas que ameacem direitos civis, explicou. A MC Martina, do projeto Movimentos e do Slam Lage, 21 anos, lembrou a criação das UPPs como um exemplo a não ser repetido: “Não dá pra gente pensar em política pública sem conversar com os dois lados. Não acredito em nenhuma mudança sem conversar com a gente, que não vai dar certo. E a UPP é a prova disso”.

Assista a um vídeo que reúne algumas das participações da noite.

Mais de 90 pessoas assinaram o livro ata da reunião, subscrevendo o manifesto lido no início do encontro pelo pesquisador Daniel Hirata, do NECVU. Veja abaixo o texto completo:

REDE FLUMINENSE DE PESQUISAS SOBRE VIOLÊNCIA, SEGURANÇA PÚBLICA E DIREITOS HUMANOS

CARTA ABERTA

Segurança pessoal, ou seja, direito à vida e à integridade física e liberdades civis são, juntamente com a subsistência básica, os direitos humanos mais elementares, sem os quais nenhum outro direito é fruído.

O Atlas da Violência de 2019 mostra que, em 2017, tivemos 65.602 pessoas vítimas de violência letal intencional no Brasil, das quais 75,5% são negros. Somos um país em que a taxa de mortes é 43,1 por 100 mil habitantes entre cidadãos negros e 16 por 100 mil habitantes entre cidadãos brancos. O escândalo humanitário desses números se aprofunda, se atentamos que esta disparidade é crescente: os negros foram 63,3% dos assassinados em 2007, num crescente que levou aos 75,5% de 2017. A sistematicidade desses assassinatos, seu viés racial e sua escala numérica são próprias de graves violações de direitos humanos e crime contra a humanidade. O Brasil é um país cujo Estado protege desigualmente a vida e a integridade física de seus cidadãos.

Os assassinatos são a ponta do iceberg dessas graves violações: antes dessas mortes e concomitantemente a essas mortes, as vidas são podadas nas liberdades civis elementares, as pessoas alteram suas pequenas rotinas e hábitos pelo medo da violência que as cerca, alteram os caminhos pelas quais se movimentam, os lugares que frequentam, as associações de que participam, a expressão do que pensam, as propriedades que carregam consigo.

Na história da violência e da segurança no estado do Rio de Janeiro, há mais de duas décadas a violência se caracteriza pela presença enraizada de grupos criminais armados – ou facções do tráfico ou milícias – que dominam áreas de bairros e regiões do estado de forma ostensiva. Políticas de segurança baseadas em tiroteios, enfrentamento armado do varejo da venda das drogas nas favelas e periferias da região metropolitana e mais recentemente do interior do estado predominam, se sucedem e fracassam desde o final dos anos 1980. São as práticas de segurança pública – sua ênfase nos confrontos e na violência letal e sua fragilidade em investigação capaz de enfraquecer e desarticular os grupos criminais – que definem as principais características do cenário fluminense.

Pesquisadores e pesquisadoras dos fenômenos da violência, da segurança e dos direitos humanos se dedicam dentro de universidades, em organizações sociais e jurídicas e em organizações locais a produzir conhecimento baseado em evidências científicas e empíricas e a divulgá-lo. Algumas vezes esse(a)s pesquisadore(a)s se tornam vítimas de ameaças à sua integridade física e principalmente moral. Os cenários recentes, tanto na esfera nacional como estadual incluem o agravamento dos discursos de violência por parte de autoridades do estado, acirramento de ações violentas e letais no âmbito estadual e reações violentas por parte de grupos criminosos. No meio deste processo encontram-se populações oprimidas por forças armadas, defensore(a)s de direitos, ativistas e pesquisadore(a)s.

Nesse contexto, hoje, em 1º. de julho de 2019, criamos a Rede Fluminense de Pesquisas sobre Violência, Segurança Pública e Direitos Humanos.

Rio de Janeiro, 1º. de julho de 2019, Salão Nobre, IFCS/UFRJ

2 respostas para “Pesquisadores lançam rede fluminense para atuação conjunta”

  1. Carlos Lima Jr. disse:

    Iniciativa importante e necessária não somente para o Rio de Janeiro, como para todo Brasil. Afinal de contas, estamos sob um governo que aprova e estimula uma política de extermínio da população negra e pobre desse país.

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