Por uma segurança pública que vá além dos escudos
Por Ricardo Moura*
Em 2017, o cineasta pernambucano Marcelo Pedroso teve uma ideia ousada: retratar o cotidiano dos policiais que integram o Batalhão de Choque da Polícia Militar de Pernambuco. O filme, contudo, foi alvo de diversas críticas e acabou retirado de circulação pela própria equipe de filmagens. A partir do material bruto gravado à época, o diretor refez a película incluindo, desta vez, os próprios percalços pelos quais ele passou para concluir a obra.
Por trás da linha de escudos (2023) é fruto dessa reflexão sobre o papel da polícia na sociedade. Ao mesmo tempo, o filme mostra o desafio que um intelectual de esquerda possui para estabelecer um diálogo franco com soldados altamente adestrados e especializados como os do Batalhão de Choque.
O filme tem início com a tropa em ação durante um processo de desocupação. No jargão militar, as manifestações que visam à reivindicação de direitos básicos, como a moradia, são compreendidas como “distúrbios civis” que precisam ser reprimidos. Tudo em nome da lei e da especulação imobiliária.
Recife teve um caso recente de ampla repercussão em que o Choque foi acionado para intervir: o movimento “Ocupe Estelita”, que buscava impedir a construção de um conjunto de torres de até 38 andares de altura na área do Cais José Estelita, localizado no Centro Histórico.
Tanto o diretor quanto alguns dos policiais retratados na obra participaram do confronto em torno do local, mas em lados diferentes. O filme mostra a interação entre eles e as memórias que cada um tem sobre o episódio. A imagem do escudo é decisiva para o entendimento do que está em jogo. Estar do lado de lá da linha de defesa é agir de forma quase irreflexiva em defesa de interesses muitas vezes contrários aos da população. Quando confrontados com esse impasse, os policiais afirmam não pensarem muito sobre o assunto. A preocupação maior é realizar o serviço a contento, cumprir a missão que lhes foi dada.
Há um ponto do filme em que o diretor percebe ser inútil avançar nas entrevistas. As falas são protocolares. A incorporação do “ser policial” a quem faz parte do Batalhão do Choque é plena. Não à toa são os agentes mais bem treinados da corporação: precisam estar preparados para qualquer emergência e em situações agudas de crise. Em contrapartida, a individualidade parece se perder em meio ao coletivo. Formam uma massa organizada e enérgica. E nada além disso. São apenas um instrumento perfeito de repressão.
Muito a ser dito sobre a corajosa obra de Marcelo Pedroso, mas o espaço não permite. Vale a pena assistir e se deixar ser afetado pelas imagens. Em um contexto de colapso ambiental e hiper concentração de renda, o policiamento tático, ao estilo Choque, é cada vez mais acionado pelos governantes. Não só no Brasil, mas no mundo. Trata-se de uma guerra, como bem diz o diretor. Uma guerra do Estado contra a sociedade. Imaginar uma outra segurança pública é conceber um pensamento que supere a linha de defesa dos escudos.
Ricardo Moura é consultor para o Nordeste na Rede de Observatórios.*