Rede de Observatórios de Segurança

Quais crianças têm direito à infância?

event 4 de novembro de 2022

*Por Wellerson Soares

O som das batidas na lataria da van e a sirene rompem o silêncio e anunciam o início de uma operação. A porta da viatura se abre e dá visibilidade aos agentes que vão participar da ação: três crianças vestidas com coletes, capacetes e empunhando simulacros de fuzis idênticos aos verdadeiros. A cena é parte de um vídeo promocional de um evento feito pela Polícia Militar do Rio de Janeiro para o Dia das Crianças, que contou com a participação de dezenas delas no Centro de Educação Física e Desportos, em Sulacap, na Zona Oeste carioca. 

A promoção da experiência aos filhos dos policiais sobre a profissão, colocando-os em contato com equipamentos, viaturas e cães da força policial, para além de chocante com a cena dos menores empunhando simulacros de fuzis, lança um olhar sobre quais crianças têm direito à infância. A Rede de Observatórios apontou no relatório “Máquina de moer gente preta: a responsabilidade da branquitude” que 1.101 crianças e adolescentes foram vítimas de violência em um ano, sendo a maior parte delas negras. Os números apontam um aumento de 34% nos eventos violentos contra menores nos sete estados monitorados pela Rede entre julho de 2021 e agosto de 2022.

“Eles não viram que eu estava com a roupa da escola, mãe?”, foram as últimas palavras de Marcos Vinícius, na época com 14 anos, morto com um tiro nas costas durante uma operação policial ilegal no Complexo da Maré, em 2018. O menino chegou consciente ao hospital e disse à mãe, Bruna da Silva, que o tiro partiu de um carro blindado da CORE. 

Uma única bala do BOPE também tirou a vida de Heloysa Gabrielle, de seis anos, que brincava no terraço de casa durante uma incursão dos agentes em Porto de Galinhas (PE). Esses e outros tantos casos emblemáticos como os de João Pedro, Ágatha e até a criança ainda em gestação por kathlen Romeu tem uma única cor em perspectiva. A pele negra vira alvo e se vê impedida de sonhar e viver desde a infância, seja diretamente com um disparo de arma de fogo, seja por projetos de campanha como o do candidato a governador do estado de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), que visam a redução da maioridade penal e consequente inclusão de menores no sistema prisional.

Para o coordenador do Observatório do Piauí e pesquisador do Núcleo de pesquisa sobre crianças, adolescentes e jovens (NUPEC/UFPI), Marcondes Brito, o racismo e o eugenismo instaurado nas instituições de poder fazem com que as crianças de pele negra estejam dentro do escopo de criminosos que precisam de uma política própria de punição.

“O racismo estrutural instituído no Brasil, junto com o processo de eugenismo que permeia as instituições sociais trouxeram principalmente para as instituições de segurança e assistência a filtragem policial e a do menor infrator, que precisa das políticas de contenção. No Piauí, vemos muito claramente como as polícias promovem uma violência enorme contra crianças e adolescentes, ao ponto de começarmos a pensar o conceito de juvenicídio. O racismo é tão escancarado e intenso que, ao mesmo tempo que o estado usa de truculência e letalidade principalmente contra menores negros, é leniente para punir crimes de racismo”, disse Marcondes. 

Antes de promover ações que envolvam menores em dinâmicas de violência e contexto de armas ou o controle sobre as vidas de jovens negros periféricos, é preciso garantir políticas públicas que promovam proteção e cuidado às crianças e aos adolescentes. Inclusive ações que gerem conscientização dos menores e dos responsáveis em relação aos seus direitos e como identificar tratamentos inadequados, abusos, e assim encontrar meios para denunciar.

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* Wellerson Soares é jornalista na Rede de Observatórios da Segurança.

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