Ser jovem como sonho, memória e esperança
Por Fernanda Naiara*
Saudade do amigo-irmão que morreu em vão
Até tentou sonhar mas tiraram seu chão
Já tentei de tudo, eles me querem morto
Mudei minha postura, eles me querem morto
Não é questão de tempo, eles me querem morto
Me querem morto, me querem morte
Essa é a morte do esquecimento
Morte colonial
Com pressa
Com dor
Com sofrimento
Morte sem moldura, sem retrato, sem família
Morte sem poder se transmutar na travessia
Morte sem poder atravessar
Morte pra matar
Morte prevista nas estatísticas
Pose de Malandro/Me querem morto – Mateus Fazeno Rock feat. Big Léo
O lugar da memória pode ser descrito como aquele em que momentos e sensações já vivenciados estão gravados. Seja pelos sentidos, seja pelas histórias que constroem sentidos de vida. A memória das juventudes brasileiras estão longe de serem igualitárias ou equivalentes. As desigualdades, enfatizamos aqui as de gênero e raça, parecem definir os contornos pelos quais algumas memórias serão vivenciadas.
Enquanto Rede que monitora eventos de violência envolvendo as juventudes, trabalhamos com as memórias de dor, vulnerabilidade e vitimização, as quais pessoas jovens estão inseridas. Reivindicar, por meio da produção de dados, a dignidade das juventudes se justifica pelas escandalosas evidências dia após dia, ano após ano.
A realidade da ação policial ostensiva escancara um antigo projeto de Brasil: matar de todas as formas possíveis jovens negros e periféricos por serem quem são. O elemento “combate ao crime” não é central nas ações que fazem vítimas em todos os estados do país, mas raça, gênero e a experiência do território centralizam como um alvo as vidas das juventudes.
O trecho da música dos artistas Mateus Fazeno Rock e Big Léo traduz e enfatiza uma morte construída socialmente, inclusive pelas políticas públicas, disputando a narrativa de mortandade por “acidente” ou por “operação”, “confronto” e “ameaça”. Desde o Ceará, lembramos da vida de um jovem de 16 anos que teve o pulmão atravessado por um tiro da Polícia Militar e sua mãe clamava pela vida do filho em julho deste ano. Ele foi para a UTI e em 18 dias não tinha mais vida. Não tinha mais filho, não tinha mais um futuro. Não tem mais. Restou a memória.
Em 2019, Juan Pablo também foi atingido e morreu em uma praça na periferia de Fortaleza pela mesma força do Estado. Tiro planejado, sem possibilidade de recuperação. São muitas histórias que escancaram a brutalidade com que a juventude favelada e negra é inscrita no Brasil. Disputamos essa narrativa a partir da defesa dos adolescentes e jovens como sujeitos de direito deste território.
Registramos 633 casos de violência contra crianças e adolescentes apenas no primeiro semestre de 2023. Esse número aumenta e se complexifica quando consideramos a juventude até os 29 anos. Questionamos como uma sociedade que tanto valoriza a juventude faz também dela uma grande vítima.
Nesse contexto reafirmamos também o lugar da memória como política em que se tece estratégias de vida frente aos avanços das formas de extermínio. Enquanto se produz morte de jovens, a juventude viva produz vida em contraponto ao discurso que insiste em desvalorizar seus sonhos e esperanças.
A possibilidade de sonhar e esperançar juventudes protegidas justifica a produção de dados populares que consigam de fato materializar os impactos e os caminhos da produção de morte. Quando e como as vidas prejudicadas por uma política que não tem como prioridade a proteção irá reparar os danos de todos esses anos e gerações?
Fernanda Naiara é pesquisadora do Observatório do Ceará.