Trabalho análogo a escravidão é instrumento para maximização dos lucros
Por Felipe Freitas*
O trabalho análogo à escravidão funciona como uma expressão perversa da precarização radical do trabalho imposta pelo capitalismo. É associado ao racismo como sustentáculo ideológico de um modelo de exploração de pessoas e produção de lucros para grandes grupos econômicos e cadeias produtivas. Trata-se de uma cruel persistência histórica, que se associa a modelos contemporâneos de produção, e que corrói conquistas históricas dos trabalhadores.
No Brasil, a prática de trabalho em condições análogas à escravidão vem sendo objeto de denúncias constantes dos movimentos sociais e também é alvo de uma comprometida ação de fiscalização do Ministério do Trabalho (em especial pela posição engajada de servidores públicos que atuam como auditores); Ministério Público do Trabalho, Comitês de Erradicação do Trabalho Escravo e Polícias Federal e Rodoviária Federal. Desde 1995, quando foram criados os grupos especiais de fiscalização móvel, mais de 600 mil trabalhadores foram resgatados em condições de trabalho análogas à escravidão o que revela a extensão do problema no território nacional.
Em 2023, nos primeiros 100 dias de governo Lula, 1.127 trabalhadores em situação análoga à de escravo foram resgatados por equipes de fiscalização em todo o país – o maior patamar em 15 anos para esse período. Tais dados demonstram um aumento no número de operações, mas também são resultado do quadro de maior vulnerabilidade da população que é recrutada para este tipo de trabalho.Ao lado de uma intensificação da pressão dos setores produtivos por índices e resultados de maior lucratividade, com redução dos custos de mão de obra e desresponsabilização no que tange às obrigações trabalhistas.
Os casos de trabalho em condições análogas à escravidão lamentavelmente não são excepcionais no sistema capitalista global, mas, pelo contrário, são utilizados como instrumento ilegal de maximização de lucros, mesmo que mediante a manutenção de padrões inadmissíveis de violência e exploração sobre os trabalhadores. As práticas de exploração do trabalho escravo são, em certo sentido, a base de um expansão capitalistas desregulamentada que encontra seu pleno sentido na ideia de lucro máximo e custo mínimo.
A legislação e as estruturas de enfrentamento ao trabalho escravo no Brasil, no entanto, progrediram nos últimos 30 anos e conseguiram feitos importantes como grandes operações de resgate e divulgação permanente e sistemática de informações e estatísticas da inspeção do trabalho. Desde 1995, o país criou mecanismos como a Emenda Constitucional 81 que prevê que as propriedades rurais e urbanas onde forem localizadas a exploração de trabalho escravo serão expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular, ou a lista suja do trabalho escravo que consiste no cadastro, publicado pelo Ministério do Trabalho e Emprego, com a identificação dos empregadores que tenham submetido trabalhadores a condições análogas à de escravo com vistas a permitir uma maior articulação das ações governamentais e do sistema de justiça no âmbito da luta pela erradicação do trabalho escravo.
Tais medidas, no entanto, seguem insuficientes diante da grandiosidade do problema e continuam nos desafiando a constituir novos e mais eficientes mecanismos de enfrentamento ao trabalho escravo e promoção de direitos da classe trabalhadora. Entre estas medidas destaco a importância de aperfeiçoar ações de acolhimento, proteção e cuidado às pessoas resgatadas; a necessidade de dar efetividade à expropriação de terras utilizadas para a prática de trabalho escravo ou ainda a importância de reconhecer a imprescritibilidade do crime de trabalho análogo à escravidão dando efetividade à responsabilidade das cadeias produtivas que se beneficiam deste tipo de conduta.
Trata-se de um desafio político ambicioso cujos resultados dependem da vigilância permanente da sociedade e da atuação articulada do sistema de justiça e dos entes governamentais. Sem dúvida, muito foi feito nos últimos 30 anos para enfrentar esse problema, porém segue sendo muito importante manter-se atento para de uma vez por todas erradicar este vergonhoso problema social.
*Felipe da Silva Freitas – é doutor em direito pela Universidade de Brasília e Secretário de Justiça e Direitos Humanos do estado da Bahia