Vini Jr: homem negro, inferno branco
Por Wellerson Soares*
“Dizem que a felicidade incomoda. A felicidade de um preto brasileiro na Europa incomoda muito mais”. Foram essas as palavras de Vinicius Jr. ao se posicionar contra um dos casos de racismo que sofreu no segundo semestre de 2022, na Espanha. De lá para cá, cânticos, ameaças de morte e agressões dentro de campo subiram o tom na escalada de racismo, chegando a um boneco, com camisa e nome do jogador, pendurado em uma ponte de Madri, simulando enforcamento.
A Espanha tornou-se para Vinicius o inferno branco vivido por personagens negros nas obras de Quentin Tarantino. Enquanto isso, o mundo do futebol se esconde atrás de notas de repúdio. Segundo relatório publicado em 2022 pelo Observatório da Discriminação Racial no Futebol, foram mais dez episódios de racismo, quatro de xenofobia e um de LGBTQIA+fobia contra atletas brasileiros ocorridos no exterior. No Brasil, os números são ainda maiores. Foram 137 casos ocorridos no país, dos quais 74 dizem respeito à discriminação racial. Os dados analisados consideram apenas eventos noticiados pela imprensa. Mas um olhar com lupa revelará números superiores.
O futebol na Espanha segue como um universo à parte e, assim como no Brasil, não tem em seu histórico o combate de maneira contundente ao crime de racismo. Vinicius é alvo recorrente no país. Em pelo menos quatro ocasiões de preconceito racial com grande repercussão, a promotoria de Madri decidiu não apresentar denúncia, pois segundo comunicado, “as ofensas duraram apenas alguns segundos” e não constituíam crime em si. O brasileiro cobrou posicionamento firme da La Liga, organização do Campeonato Espanhol, após xingamentos e objetos arremessados contra ele em diversos jogos. Como resposta, foi chamado de injusto e desinformado pelo presidente da instituição.
No Brasil, o Código Brasileiro de Justiça Desportiva prevê punição por meio do artigo 243-G, que enquadra a prática de “ato discriminatório, desdenhoso ou ultrajante, relacionado a preconceito em razão de origem étnica, raça, sexo, cor, idade”. Porém, o entendimento da maioria dos membros do Superior Tribunal de Justiça Desportiva é que só há caso grave de discriminação se houver manifestação coletiva da torcida.
Enquanto houver flexibilidade na interpretação nos casos e nas punições, os racistas continuarão a esticar a corda em seus ataques, seja na Espanha ou no Brasil. Como o jogador gosta de dizer e tem tatuado no corpo, “enquanto a cor da pele for mais importante que o brilho nos olhos, haverá guerra”. E a afirmação é precisa: Vinicius é de origem humilde em São Gonçalo, Região Metropolitana do Rio. Desenvolveu-se como atleta, alcançou o topo do mundo e deixou para trás a possibilidade de virar uma triste estatística das políticas de morte praticadas pela polícia brasileira. No entanto, o racismo é como um alvo às costas e por isso segue vítima de outras formas de ataques.
A felicidade de negros e negras bem-sucedidos é uma heresia. Para o mundo que vive sob a lógica do racismo, cabe ao preto um lugar na cena do crime, sem saber ler e escrever, mas sabendo o nome da delegada. Vinicius não pode ser visto como exemplo para as crianças, como alguns jogadores já afirmaram publicamente, mas não houve a mesma mobilização para apoiá-lo contra o racismo. Hashtags espontâneas e notas de repúdio a esmo de instituições não podem ser as únicas formas de posicionamento contra o crime. É preciso assegurar que o ódio não ponha em perigo a vida de pessoas pretas.
Wellerson Soares é jornalista na Rede de Observatórios*