Vini Jr. mostra que na luta antirracista estamos sós
Por Wellerson Soares*
É sábado pela manhã. Você acorda, escova os dentes, toma café e passa a planejar o dia. Dentro do planejamento, certamente não está “ser vítima de racismo” listado. O interlocutor deste texto sofreu racismo em um mercado na Zona Sul do Rio de Janeiro. Mais um caso, mais um dia na vida de um negro, mas a sensação é sempre a mesma: impotência, sentir-se sozinho, sem acreditar que qualquer atitude poderia mitigar o sentimento de tristeza que invade após a situação. O racismo nos consome diariamente e nos esgota igualmente.
Do outro lado do mundo, a 8.850 km, Vinicius Jr. era aplaudido enquanto se desfazia em lágrimas – de esgotamento e de solidão. Foi escolhido a força para ser o atual rosto dessa luta, sem querer, sem ter escolha. Homem negro, inferno Branco. Ele esteve sozinho na sala de imprensa, assim com está na Espanha. Falta apoio do Real Madrid, da Confederação Brasileira de Futebol, de instâncias superiores do esporte, dos companheiros de profissão. No momento em que dizia ter pensado desistir de tudo, Carvajal, parceiro de clube, em outra coletiva com jornalistas, afirmava que a Espanha não é racista.
Mas ao contrário do que afirmou o lateral espanhol, a natureza racista da Espanha não se deixa esconder. A começar por não haver legislação no país com relação ao racismo. Contra Vini, foram pelo menos 20 episódios de discriminação racial. E mesmo a tentativa de amenizar os arranhões causados na imagem espanhola com a promoção de um jogo amistoso contra o racismo entre as seleções deu errado. Tudo porque um segurança que atuava na partida mostrou uma banana a um brasileiro membro da equipe do jogador.
O preconceito racial mantém negros e negras ocupados. Os pensamentos são monopolizados, as energias são direcionadas para ações – ou inações, pois também consomem – em uma luta que parece não ter fim. O Brasil registrou, em 2023, um total de 176.055 processos judiciais envolvendo casos de racismo ou intolerância religiosa, segundo dados da startup JusRacial. O berço esplêndido brasileiro é extremamente truculento com homens e mulheres negras cotidianamente. A pátria amada oprime, leva ao esgotamento, anula, suspeita, julga e executa pessoas em nome do racismo.
E todas essas violências são atribuídas às vítimas, foram elas que incitaram uma reação contra elas. O Vinicius Jr. provocou os adversários e por isso foi chamado de macaco por centenas de milhares de pessoas e teve um boneco enforcado em praça pública na Espanha. Meu comportamento no supermercado Zona Sul foi considerado suspeito para uma senhora, que retirou uma criança branca de perto com olhar de desconfiança. Outros jovens negros nas periferias brasileiras têm seu direito à vida retirado porque alguém suspeitou e julgou-os indignos de viver.
Mães, pais, irmãos, tias, sobrinhas, amigos, às vezes famílias inteiras são vitimadas por um racismo que opera sistematicamente. Se o Vinicius Jr. sofre, de igual modo, sua família inteira. Aliás, quando um preto sofre, sofremos todos. Dói em cada um de nós ver um jovem de 23 anos de punho cerrado no centro de um estádio com mais de 50 mil vozes em uníssono gritando “mono, mono (macaco em espanhol)”. É admirável sua força de estar de pé, mas é dolorido colocar-se no lugar dele e saber o quanto é difícil. Mas a branquitude não se questiona, ninguém se choca e as injustiças se acumulam.
Quando um negro é atingido – e várias vezes morto – pelo racismo, rasga um pouco a pele de cada um. Foi doloroso saber que Ana Paula Oliveira esperou 10 anos para ter justiça pelo filho, que morreu com um tiro nas costas pelas forças policiais, e viu o sistema falhar com ela mais uma vez. A justiça, aliás, na última semana falhou também com Cláudia Ferreira, ao inocentar os PMs acusados de matá-la e arrastá-la numa viatura, e com Evaldo Rosa, ao ver o Superior Tribunal Militar inocentar os militares que dispararam 80 tiros contra o homem e sua família. De igual modo, a prisão dos mandantes do assassinato de Marielle Franco não trouxe sensação de vitória, mas de desalento e descrença nas instituições, que durante seis anos participaram e garantiram a impunidade dos autores do crime. Marielle está presente, porém sua ausência também ecoa um vazio jamais preenchido. Sabe o que todos esses casos têm em comum? Todas as vítimas eram negras.
O boletim Pele Alvo: a bala não erra o negro, publicado pela Rede de Observatórios ano passado, corrobora: de 3.171 registros de morte por intervenção policial em oito estados, com informação de cor/raça declaradas, pretos e pardos foram 87,35% dos casos.
As denúncias têm surgido, as redes se mobilizado para dar visibilidade à luta. Mas é preciso lutar junto e acreditar junto que é possível transformar uma realidade nefasta em um terreno que respeite e preserve a vida e a liberdade de pessoas negras.