Violência, responsabilidade e justiça: o primeiro julgamento da Chacina do Curió
Por Luiz Fábio Paiva
Os primeiros quatro réus, dos 44 acusados de envolvimento na Chacina do Curió, irão a julgamento em junho deste ano. Após longos sete anos de espera, a expectativa de familiares e sociedade civil é de que a justiça do Ceará contrarie toda morosidade que tem sido regra geral de suas movimentações e traga respostas aos enlutados.
A Chacina do Curió é um dos eventos violentos mais dramáticos da história do Ceará. Trata-se de um acontecimento que revela a extensão da miséria de uma política de segurança pública que, em nenhum momento, parece minimamente suficiente para gerar proteção integral a pessoas pobres e negras das periferias.
Os assassinatos de 11 pessoas aconteceram entre os dias 11 e 12 de novembro de 2015, com participação direta e indireta de operadores de segurança pública vinculados à Polícia Militar do Ceará (PMCE). Ao todo, 44 pessoas (43 praças da PMCE) foram denunciadas, sendo 34 pronunciados pela justiça estadual em três processos.
O julgamento tardio é apenas um capítulo da série de violações de direito e produção de sofrimento social evidenciados pela tragédia.
Em primeiro lugar, a Chacina em si revela como a violência contra os mais pobres encontra na omissão do Estado todas as boas condições para prosperar. Estima-se que a primeira morte aconteceu por volta de meia noite e a última quase quatro horas depois. Isto significa que, nesse período, assassinos tiveram êxito em executar pessoas na periferia de Fortaleza sem encontrar qualquer resistência das forças de segurança.
Uma das razões seria o envolvimento de forças de segurança estadual no crime. Eles foram citados por testemunhas na denúncia feita. Por quase quatro horas, policiais militares atuaram de maneira arbitrária e sem responder a qualquer comando, causando a morte de pessoas sem nenhuma chance de defesa. Restou às mães enlutadas aguardar que seus filhos fossem submetidos ao crivo da Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS) para saber se os mortos eram dignos ou indignos da atenção das forças de segurança e justiça do estado.
Mesmo quando a participação dos policiais militares se mostrou evidente, com uma denúncia robusta do Ministério Público contra dezenas de policiais em efetivo exercício da função, o governo de Camilo Santana (PT) decidiu poupar a PMCE, tratando o problema como um “caso isolado”.
O julgamento dos acusados irá acontecer como se apenas alguns policiais estivessem envolvidos no crime. Não há qualquer reflexão sobre como esses profissionais vinculados a uma instituição de segurança desenvolveram uma ação de tamanha envergadura sem encontrar qualquer resistência. As omissões e responsabilidades de gestores estaduais e comandantes da PMCE foram simplesmente apagadas do processo. A justiça recaiu não contra todos os envolvidos, mas contra um grupo que não encontrou meios de fugir do julgamento. Cada autor será tratado como indivíduo em um crime coletivo, com participação e responsabilidade de instituições de Estado.
Para julgar esses indivíduos as responsabilidades políticas de gestores e comandantes serão ignoradas, como se não existissem e não pudessem ser cobradas. Desta maneira, espera-se dos julgamentos alguma justiça, mas ela é parcial e atende às dinâmicas de poder feitas ao gosto das elites políticas e militares. Nessa cadeia de comando, quem tem o poder não é alcançado.
Luiz Fábio Paiva é coordenador do Observatório do Ceará.