Visibilidade e vida da população travesti e transexual no Brasil
Por Adyel Beatriz
“Pode bater que é tudo homem”. Com essas palavras, Zuri, Lua e Anne foram agredidas por cerca de 15 homens na madrugada do dia 19 de janeiro. A agressão aconteceu na saída do Casarão do Firmino, roda de samba na Lapa, no Rio de Janeiro. Em seu relato, publicado nas redes sociais, Zuri diz que “após ser retirada agressivamente do samba iniciaram uma agressão verbal com falas transfóbicas como: “nela (Anne, mulher cisgênero) eu não bato, mas em vocês dois eu meto a porrada”, “eu pensava que era mulher, senão já tinha batido antes”, nos jogaram no chão e nos chutaram por todo o corpo, cabeça e rosto”.
A violência diária que a comunidade trans enfrenta é uma ferida aberta na consciência nacional. Apesar das promessas de políticas públicas e avanços legais, os relatos de agressões físicas, discriminação e exclusão continuam a surgir. Essa realidade questiona não apenas a eficácia das leis, mas também a disposição da sociedade em abraçar a diversidade.
O boletim Elas Vivem: dados que não se calam registrou 29 transfeminicídios em 2020 e 2021 nos estados assistidos pelo Observatórios. Segundo a pesquisadora da Rede em Pernambuco, Dália Celeste, essa condição se dá pela negligência do governo. “Houve um silenciamento e a omissão do governo em relação a criação de políticas públicas. Corpos trans e travestis passam por um processo de desumanização e são vistos como corpos que não deveriam existir, o que alimenta os crimes de ódio”, afirmou.
O cotidiano de transexuais e travestis no Brasil é atravessado pela violência e segregações constantes. Uma epidemia que exige não apenas atenção, mas mudanças urgentes que o Brasil precisa enfrentar. De acordo com dados do Grupo Gay Bahia (GGB), em 2023, o Brasil permaneceu como o lugar com maior número de homicídios e suicídios da população LGBTQIA+: 257 mortes violentas registradas, um caso a mais do que foi registrado em 2022. Destas, 127 são travestis e transgêneros. O número mantém o país no posto do mais transfóbico em todo o mundo.
Situações precárias não são escolhas, mas uma consequência da falta de oportunidades oferecidas a travestis e transexuais. É um reflexo da negligência estatal, da discriminação sistemática, da ausência de uma rede de apoio efetiva e de uma sociedade em que a sobrevivência muitas vezes exige renunciar a dignidade.
Neste contexto, a decisão da Justiça Federal de incluir perguntas sobre orientação sexual e identidade de gênero no Censo Demográfico, por exemplo, seria um vislumbre de progresso em um horizonte vasto de desafios. Entretanto, a falta de abordagem técnica e metodológica do IBGE revelou uma indiferença sistemática à coleta de dados. O procedimento feito de maneira correta poderia iluminar a verdadeira extensão de indicadores importantes para construir um cenário de atenção e políticas públicas voltadas à população trans no Brasil.
Contexto penitenciário
A violência enfrentada pela população de travestis e transexuais é agravada nos presídios devido à institucionalização da violência e da discriminação. Os agentes policiais frequentemente carecem de preparo para lidar com questões relacionadas ao gênero, as tratando como seres desumanos e desconsiderando por completo suas identidades. Isso muitas vezes ocorre ao negar-lhes o direito à autodeterminação de gênero, um direito já consolidado e reconhecido no julgamento da ADI 4275 pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
A Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) compartilhou informações coletadas por meio da pesquisa denominada “TransBrasil: Um olhar acerca do perfil de Travestis e Transexuais no sistema prisional”, realizada pela instituição no primeiro semestre de 2021 em sete estados do país. De acordo com a pesquisa, a cor da pele das pessoas trans privadas de liberdade, em sua maioria, é negra (preta ou parda), algo em torno de 85% dos casos e têm baixa escolaridade. O dossiê concluiu que as estruturas de poder que moldam o modelo de reorganização social por meio das prisões transformam as travestis e outras pessoas trans, especialmente as negras e racializadas, em uma espécie de limbo existencial, onde são submetidas à anulação pela precarização.
Em um levantamento divulgado pelo Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, observou-se que o índice de travestis e mulheres transexuais entre 18 e 29 anos em privação de liberdade é de 46,2%. Na faixa entre 30 e 45 anos, esse número sobe para 50%, enquanto aquelas acima dos 45 anos representam 3,8%. Contudo, ainda existe uma carência de dados governamentais mais abrangentes livres da perspectiva binária para retratar o panorama carcerário em suas diversas perspectivas de gênero.
Dia da Visibilidade Trans
Em janeiro de 2024, a primeira ‘Marsha’ Trans Brasil acontecerá em Brasília, no dia 28. Promovida pela ANTRA, a iniciativa busca realizar a maior ocupação já feita pela comunidade no país. Em comemoração aos 20 anos do Dia da Visibilidade Trans no Brasil, celebrado em 29 de janeiro, a organização convida pessoas trans, travestis e pessoas aliadas a se unirem.
A visibilidade trans não pode ser uma mera formalidade estatística, deve ser um chamado à ação. A mudança real exige uma crítica honesta das instituições sobre políticas e mentalidades perpetuadoras da violência contra pessoas trans no Brasil. A luta não é apenas contra a intolerância, mas contra a complacência permite que essa intolerância floresça. Urge uma reavaliação profunda, não apenas das leis, mas da consciência coletiva.