Rede de Observatórios de Segurança

A polícia militar não pode servir como força auxiliar do caos

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event 9 de setembro de 2021

Ricardo Moura*

A História do Brasil pode ser contada como uma montanha-russa de instabilidades institucionais: após um golpe de Estado, segue-se um período de normalidade até vir uma nova crise política e assim por diante. Vivemos sob a ameaça de uma nova ruptura institucional, dessa vez motivada não por agentes externos ansiosos por tomar o poder, mas pelo próprio presidente, o podemos denominar de um “autogolpe”, para se perpetuar no cargo ou, na pior das hipóteses, não ser preso. O feriado do Dia da Independência foi a vitrine pela qual o tropel autogolpista desfilou como uma tentativa de intimidar a população e, principalmente, os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Essa iniciativa dará resultados?

Karl Marx, o pensador do comunismo (essa besta-fera que em pleno século XXI ainda põe medo em muita gente), afirma que a história humana se repete primeiro como tragédia e depois como farsa. Dito de outra forma, é um erro acreditar que as configurações de um determinado momento histórico possam ser reproduzidas do mesmo modo em contextos frontalmente diversos ainda que a retórica golpista busque reativar espectros dos passados ou glórias imemoriais. O próprio mau uso da palavra comunismo é uma mostra disso. O mais perto que a nossa bandeira chegou de ser vermelha foi com a tintura de tanto sangue derramado do genocídio que se instalou sobre essa terra desde o descobrimento.      

Na falta de um corpo organizado no interior das Forças Armadas que tope encarar a aventura do autogolpe, como ocorreu na Ditadura Militar, o presidente busca aliados em suas forças auxiliares, as polícias militares, causando mais uma dor de cabeça aos governadores. Vale ressaltar que os gestores estaduais são tidos pelos grupos bolsonaristas como os bodes expiatórios de tudo o que acontece de ruim neste país: da explosão de casos de Covid-19 ao aumento no preço da gasolina.

O vínculo das PMs às Forças Armadas foi estabelecido pelo Decreto-Lei nº 667, de 2 de julho de 1967, publicado em plena Ditadura Militar. A legislação afirma que as polícias militares são “consideradas forças auxiliares, reserva do Exército”, devendo ao Ministério do Exército exercer o “controle e a coordenação das Polícias Militares”. Institucionalmente, esse papel cabe à Inspetoria-Geral das Polícias Militares, que conta com uma dupla atribuição: desenvolver atividades de acompanhamento e controle da organização, dos efetivos, da legislação e das atividades de integrantes das PMs e dos Bombeiros; e controlar o material bélico, analisando as solicitações de aquisições de produtos controlados, com vista ao “emprego na defesa da Pátria”.

Ainda conforme o Decreto-Lei nº 677, as polícias militares podem ser acionadas para desempenhar missões peculiares das Forças Armadas, como “o cumprimento da lei, a manutenção da ordem pública e o exercício dos poderes constituídos”. Base legal para uma atuação garantidora da Lei e da Ordem existe, mas quem verdadeiramente está colocando esses valores da sociedade em risco? Esta é a reflexão que oficiais e praças necessitam fazer: Qual o conceito de nacionalismo que está em jogo em todo esse esforço de afrontar os Três Poderes? Vale a pena instaurar o caos para preservar os direitos de grupos historicamente privilegiados?

Embora tenha sido eleito pregando o fim da corrupção e com forte apoio dos policiais, o Governo Federal pouco ou nada fez por essa categoria. Em linhas gerais, a segurança pública está sendo terceirizada por meio de uma política de acesso irrestrito (para quem possa pagar um fuzil de R$ 14 mil, por óbvio) às armas de fogo. O resultado de tantos armamentos nas ruas será um desastre justamente para os profissionais da segurança, que terão de estar na linha de frente tentando impedir uma imensidão de mortes provocadas pelos motivos mais torpes.

Gestores estaduais que buscam melhorias para as tropas, que entendem a carreira militar com a seriedade devida, vêm sendo alvos de provocações, tentativas de motins e insurgências. O inédito investimento feito na área da segurança pública está sendo pago com ingratidão e perfídia. Basta comparar a situação das polícias militares de 20 anos atrás com o cenário atual para ver como as mudanças saltam aos olhos. Apostar contra os governadores é dar um tiro no próprio pé. A ruína dos Estados será a ruína de seus órgãos de segurança também. Não há como dissociar o destino de um e de outro.

Mesmo se, após esse exame de consciência, houver aqueles que desejem se aventurar de forma intrépida rumo ao caos, a lei existe justamente para isso. O Ceará tem dado um exemplo de como lidar com grupos cujos interesses se chocam com os valores democráticos. A atuação do Ministério Público Militar e da CPI das Associações Militares são peças fundamentais para determinar o que há por trás das ações de insubordinação mais recentes contra o Governo do Estado. Não é o momento de tergiversar. Em momentos de crise, a Polícia Militar precisa se manter como uma força auxiliar de defesa da ordem constitucional e não de interesses escusos, por mais que venham embalados sob a ardilosa bandeira do patriotismo.  

**Ricardo Moura é coordenador da Rede de Observatório de Segurança no Ceará

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