Rede de Observatórios de Segurança

São Paulo: a cracolândia e a insegurança são questões estruturais

location_on
event 10 de junho de 2022

Por Francine Ribeiro*

A situação da cracolândia em São Paulo revela um incômodo generalizado da ausência de proteção do Estado, que quando aparece, vem com seu braço armado dispersar as pessoas que não têm acesso ao direito à moradia. Sem opções, acabam por criar essa espécie de região comum de desabrigados em determinadas ruas da cidade. A população em situação de rua cresceu 31% nos últimos dois anos, o desemprego supera a taxa de 13% na capital, e em convergência a essas problemáticas, os números de roubos e furtos disparam em 2022. Todo esse cenário retrata a crise econômica que estamos enfrentando. A crise traz a sensação de insegurança e medo constantes, a vulnerabilidade encarada em diferentes polos da sociedade dá espaço para um clima hostil, entre “nós e eles”, entre os que trabalham e os que roubam, os que usam drogas por recreação e os zumbis, os que são entendidos como humanos e os tidos como animais – ou nem isso.

A falta de certeza do que será e se terá a próxima refeição, ou se haverá expulsão forçada de onde se instalou, além da violência física constante que é submetido pelas forças policiais e civis, geram um estresse nessa população, que anda sem destino, às vezes com pressa para chegar a lugar nenhum. É comum ver brigas, ouvir gritos e choros, além de nos deparar com constantes tentativas de interação dessa população com os passantes, que por vezes, não entendem suas palavras desconexas entoadas após o uso abusivo de drogas. E antes que defendam os abrigos públicos que temos hoje, faço o convite para que visitem esses espaços e vejam as condições deles.

Estar na região central e ouvir as conversas em pontos de ônibus não faz bem para pessoas empáticas, os “cidadãos de bem” comumente culpabilizam os moradores de rua por estarem ali, os criminalizam e até desejam sua morte quando passam por uma situação provocada por esses, como em um contexto de roubo, por exemplo. Há sentido no medo em andar pela cidade, em dia claro, da minha janela escuto gritos de “pega ladrão, pega ladrão!”, sirene de polícia e pneu de carro cantando, a violência está escancarada. Contudo, isso não pode dar espaço ao ódio, a crise é estrutural e precisa de pronta resolução, que não diz respeito a dispersão ou apartação dessas pessoas a partir de operações policiais, mas, principalmente de políticas que devolvam a dignidade à elas, que as coloquem em pé de igualdade a se posicionar e estabelecer uma relação com a sociedade, afinal, elas são a sociedade, apesar de esquecerem disso.

As incursões policiais norteadas pela repressão ao tráfico de drogas atingem todos, de crianças, às famílias inteiras que moram na rua, que têm seus poucos pertences como cobertores e colchões levados nessas ocasiões. Outra violência pouco comentada, também praticada pelo Estado, se realiza a partir da “limpeza” das ruas, porque independente se pessoas estiverem dormindo nas calçadas, a lavagem é feita – sem qualquer cuidado ou aviso, esses corpos são invisíveis. Essas violências, quando reproduzidas por quem as recebe, embasa falas de repugnância e preconceito como as que ouço enquanto circulo pelas ruas e lugares. Hoje, tratam os que habitam nas ruas como se merecessem ser expulsos dos lugares comuns, para bem longe dos olhos de todos. E caso se entorpeçam para continuar existindo nesse universo cruel, devem ter seus corpos castigados pelo cassetete, pela água gelada ou pela bala.

Até quando essas pessoas serão vistas como não humanas? Até quando o Estado irá ignorá-las? Quando o governo passará a atendê-las como cidadãos e não como doenças do corpo social? Até quando os “cidadãos de bem” não entenderão que enquanto o outro não for cuidado ele também não será? Quando entenderão que a indiferença ao outro representa uma ameaça à existência coletiva? Essas questões passam batidas pelo interesse público, mas quando a dimensão delas chegarem às mentes e aos corações de quem ainda é humano, muita coisa pode mudar.

 

*Francine é pesquisadora do Observatório da Segurança de São Paulo

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *