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De George Floyd ao Jacarezinho: antecedentes criminais não concedem licença para matar

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event 25 de maio de 2021

Por Daniele da Silva de Magalhães* 

George Floyd, afro-americano, 46 anos, antecedentes criminais, foi sufocado por policiais há um ano: “Não consigo respirar”. Ele fez o mundo ouvir o grito de vidas negras importam. Mas, no início do mês, na favela do Jacarezinho, 28 pessoas foram mortas em uma operação deflagrada pela polícia civil do Rio de Janeiro, sob a alcunha de Exceptis (do latim exceptus.a.um.: exceto), que nos mostrou que existem exceções. 

Eu chorei de soluçar. Não eram meus familiares. Não eram meus amigos. Eram irmãos de minha cor, como versa a composição de Bôscoli e Simonal. Eu  sou defensora pública do Estado do Rio de Janeiro há 10 anos. Mulher preta retinta, mãe, esposa. Pela atuação profissional, acostumada a me deparar com toda sorte de crime. No último dia 06 de maio, chorei. Imagens e áudios apresentavam uma carnificina. Barbárie. Genocídio. Não era o Covid-19.  Era o racismo estrutural operando pela sua veia mais eficaz: a necropolítica.

Uma sociedade acometida por hipermetropia precisa dar distância para enxergar melhor. O grande problema é que distância em termos de fatos, é sinônimo de decurso de tempo. E, em matéria de Direito, quase sempre o tempo cristaliza injustiças, extirpando direitos, sacramentando violações.

Convido-os a recuar nosso olhar ao ano de 1888, dia 13, abolição da escravatura. Após 358 anos e milhões de vidas negras sequestradas e seviciadas como objetos descartáveis, um ato legislativo de poucos caracteres, concedeu a liberdade aos que insistiram em permanecer vivos.

No 13 de maio de 2021, imagens chegam pelo celular. São prints da Folha B5, do caderno “cotidiano”. Uma celebração canalha disfarçada de informação. A lista tinha fotos, seguida de nome completo, idade, registros criminais.

Uma última coluna: “o que a família já disse sobre a morte”. O que você, leitor, diria se soubesse que seu familiar foi morto numa ação policial? Ele mereceu?! Brincou com a polícia e levou bala?! Aplausos à brilhante ação de inteligência?! Teve enterro de filho no dia das mães. Repito: teve enterro de filho no dia das mães. Conversei com familiares que reconheceram “seu menino” pelos pés, tamanho o inchaço do corpo da cintura pra cima. Disseram: – Doutora, não colocaram ele na geladeira, né…

A exposição dos rostos das pessoas mortas dentro do Jacarezinho é sinônimo de desumanização não só das vítimas quanto de seus familiares. Não há motivos humanos para revitimização. Antecedentes criminais não concedem licença para matar.

A última década do século XX foi marcada por grandes violações dos direitos humanos perpetradas por agentes estatais em comunidades como: Acari, em 1990; Candelária e Vigário Geral, em 1993; Nova Brasília, nos anos de 1994 e 1995.

Os dias 18 de outubro de 1994 e 08 de maio de 1995, foram palcos de grande derramamento de sangue negro na favela Nova Brasília, Complexo do Alemão. Foram duas incursões policiais para combate ao tráfico de drogas capitaneadas pela Polícia Civil. Notícias do Jornal Estado de S. Paulo, datado de 09 de maio de 1995, enunciavam: “Polícia mata 13 suspeitos de tráfico no Rio”, “Corpos lotam picape da empresa de lixo”, “Parentes procuram identificar vítimas”.

São duas chacinas, 26 homicídios e três crimes de violência sexual. São dois inquéritos e uma ação penal. No ano de 2009, tudo foi arquivado na justiça brasileira. Perdas, violências e medos petrificados pela prescrição. Frustração. Mais medo. Impotência. Em 2017, afirmando flagrantes falhas e demora na investigação, além da falta de punição dos responsáveis e imparcialidade, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) condenou o Brasil pela violência policial.

No decurso de 22 anos, outras chacinas aconteceram, algumas repercutiram, outras não. Houve até 111 tiros disparados contra cinco jovens desarmados, dentro de um carro. Todos negros. Mas fato é que a vida das pessoas que são atravessadas por essa violência institucional muda e não desmuda com o passar do tempo.

Dizer que em nosso país tem racismo, colocar participantes negra(o)s em reality show de grande audiência, mas inviabilizar a morte de um jovem negro a cada 23 minutos é uma ironia perversa. A estigmatização das pessoas negras nega humanidade e firma sua sentença de morte. Encarar o racismo como sistema de poder é pauta urgente para reconstrução do projeto de nação.

* Daniele da Silva de Magalhães, Coordenadora do Núcleo de Combate ao Racismo e à Discriminação Étnico-racial (NUCORA) da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro.

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