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Feminicídios e letalidade policial ficam de fora do Plano Nacional de Segurança

event 7 de outubro de 2021

Por Ricardo Moura*

O desenho estratégico das políticas públicas é um passo fundamental para orientar as ações governamentais a médio e longo prazo. O estabelecimento de metas e indicadores serve ainda como um instrumento de avaliação para a própria população sobre a eficácia do poder público em entregar à sociedade o que prometeu. Dito isso, é bastante louvável que o Governo Bolsonaro tenha lançado o Plano Nacional de Segurança Pública e Defesa Social 2021-2030 (PNSPDS) a partir da atualização do Plano Nacional elaborado pelo Governo Temer, no fim de 2018, ou seja, no apagar das luzes de sua gestão.

A análise de uma política pública não nos mostra apenas a coerência entre metas e indicadores, objetivos e diretrizes. Há muito de penduricalho para que a máquina estatal possa operar da melhor forma possível, sem riscos de apagões institucionais. Além disso, há algo ainda mais importante: os valores e as prioridades de um governo mostram-se nas entrelinhas do que está escrito, na hierarquia do que se define como mais urgente para determinados grupos de interesses e, principalmente, sobre a decisão do que deve ser deixado de lado.

Muito há a ser analisado e escrito sobre a atualização do PNSPDS. Por questão de limites de espaço, vou me deter em seus aspectos essenciais. Em seu texto de apresentação à imprensa, é dito que a nova edição do documento visa suprir fragilidades do plano anterior, visando “à redução da criminalidade e a manutenção da ordem pública e da incolumidade das pessoas, do patrimônio, do meio ambiente e de bens e direitos no País”. Para tanto, os 15 objetivos do Plano de Segurança do Governo Temer são reduzidos a cinco grupos prioritários com ações estratégias específicas. Se as mortes violentas permanecem como a prioridade número um de ambos os textos, as prioridades seguintes demonstram de forma exata os públicos a quem o novo plano se destina.

O item “Proteção dos profissionais da segurança pública”, por exemplo, vem logo após “mortes violentas” em um claro aceno a uma das bases de apoio político mais fiéis ao presidente. Há aqui uma resposta a uma queixa recorrente da categoria sobre às más condições de trabalho aos quais estão submetidos no cotidiano. Situação essa, vale ressaltar, que se agravará com a política de acesso indiscriminado às armas de fogo.

Ao mesmo tempo em que dá ênfase à proteção dos policiais, o novo Plano Nacional de Segurança exclui qualquer menção à letalidade policial, que deixa de ser um indicador. Em seu lugar, entram o quantitativo de profissionais de segurança pública mortos em decorrência de sua atividade, a taxa de vitimização de profissionais de segurança pública e a taxa de suicídios de profissionais de segurança pública. Saberemos de forma precisa quantos policiais morrem no Brasil. Em compensação, o número de pessoas mortas pela polícia será uma incógnita. É quase um excludente de ilicitude estatístico.

Identificar as vítimas da letalidade policial é, por si, um dos pontos de vulnerabilidade das estatísticas sobre criminalidade e segurança pública. O Blog Escrivaninha [escrivaninha.blog] apresentou os números de mortos por intervenção policial em Fortaleza, entre janeiro de 2020 e junho de 2021. Do total de 81 casos registrados, em 71% deles não havia indicação da cor da pele. Dos 22 que possuíam identificação racial, 20 eram pardos, um branco e um negro. Qual a cor das demais vítimas? É razoável acreditar que brancos e negros são tratados do mesmo modo durante as abordagens? Como enfrentar o racismo no Brasil de forma consequente sem números oficiais confiáveis? São perguntas que correm o risco de ficarem sem respostas.

O terceiro item nas prioridades do PNSPDS é “Roubo e furto de veículos”. Essa medida pode ser vista como um grande alento para determinados setores das classes média e alta, mas está longe de merecer um status tão relevante assim em um planejamento decenal. Fecham a lista de relevâncias o “Sistema prisional” e as “Ações de prevenção de desastres e acidentes”.

Reprimir o crime organizado, combater a expansão das milícias, rever a política de drogas, aperfeiçoar o controle e o rastreamento de armas de fogo, munições e explosivos, articular ações no âmbito da gestão municipal da segurança… Nenhum desses temas aparece como um grupo prioritário no documento. Quando mencionados, surgem de forma secundária como um vestígio da redação “fragilizada” do plano anterior.

Embora previsto em lei, o feminicídio não é mencionado na atualização do PNSPDS. Em seu lugar, é empregada a expressão “mortes violentas de mulheres”, socialmente mais neutra, como se a misoginia e o machismo estrutural não fossem elementos fundantes na violência de gênero. Não deixa de ser uma medida coerente, contudo, com um governo que exaltou a figura do homem que agrediu e quase matou a própria Maria da Penha. A impressão que passa é que o novo plano de segurança foi escrito sob medida para esse tipo de “cidadão de bem”. Se o objetivo era esse, ele foi cumprido plenamente.

 

* Ricardo Moura é coordenador do Observatório da Segurança do Ceará. Esse texto foi originalmente publicado no Jornal O Povo.

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