Massacre da Castelinho: 20 anos depois, os mesmos desafios
Por Bruno Paes Manso*
Teve início na Corte Interamericana de Direitos Humanos, em San Jose, na Costa Rica, o julgamento sobre a omissão do Estado brasileiro na investigação do Caso Castelinho, ocorrido em 5 de março de 2002. No episódio, doze pessoas foram mortas por policiais, em uma ocorrência planejada e executada pela Polícia Militar. A sentença deve sair nos próximos meses.
O caso gerou grande repercussão à época não apenas pela grande quantidade de mortes ocorridas à luz do dia em uma rodovia movimentada em Itu, no interior de São Paulo. Mas porque as execuções revelaram o funcionamento de um grupo de policiais que agia com o respaldo da Secretaria de Segurança Pública e praticava diversas ilegalidades sob a justificativa de combater o crime.
Conhecido como Gradi (Grupo de Repressão e Análise aos Delitos de Intolerância), os policiais militares atuaram por cerca de um ano e assumiram a tarefa de investigação que, legalmente, é de responsabilidade da Polícia Civil. Nessas operações, os presos eram retirados das penitenciárias com autorização da Justiça para se infiltrar e aliciar parceiros para a prática de crimes. Os planos eram liderados pelos infiltrados, como no Caso Castelinho, em que foi anunciada a chegada de um avião-pagador inexistente. As vítimas foram executadas quando se dirigiam para realizar o assalto inventado. O Gradi usou os mesmos procedimentos em diversas ocorrências com morte: infiltração de presos, simulação de um crime e execução dos participantes – incluindo, em alguns casos, dos próprios infiltrados.
Durante a audiência, a Defensoria Pública representou os 43 familiares das vítimas. A promotora relatou os diversos problemas que atrapalharam a investigação e o esforço do Ministério Público para driblar essas barreiras. Estive presente na audiência como perito para descrever a ação violenta de policiais militares de diversos estados brasileiros e a repetição de velhos erros. Durante dez minutos, meu objetivo foi explicar aos juízes e à juíza da Corte, que não conhecem nossa realidade, como essa prática se transformou em um problema estrutural que atrapalha o funcionamento da Justiça e da Segurança Pública. São erros que se repetem há anos e que precisam ser corrigidos.
Abaixo, segue a história que eu contei para eles da violência policial no Brasil:
“São Paulo, Rio de Janeiro e outros centros urbanos do sul e do sudeste do Brasil são cidades que cresceram de forma acelerada. Até 1940, 70% da população vivia no campo. 60 anos depois, em 2000, 80% dos brasileiros já moravam em cidades, tornando o Brasil um dos países com maior índice de urbanização do mundo. Esse crescimento se deu, sobretudo, entre os anos 70 e 90, quando novos bairros foram criados de forma desordenada em loteamentos clandestinos, favelas e morros. É nesse contexto de transformação acelerada e sem planejamento que devemos compreender o início dos erros contínuos das políticas de segurança pública em São Paulo e no Brasil, que geram consequências até os dias de hoje.
Junto com o adensamento das cidades, veio uma grande crise econômica nos anos 80 e um intenso processo de desindustrialização. Havia medo e insegurança crescentes, diante do aumento das taxas de crime. As políticas de segurança pública foram um dos instrumentos usados para lidar com essa situação. O modelo era desequilibrado. Apostava-se no policiamento territorial e ostensivo, de responsabilidade da Polícia Militar, concentrado nos bairros vistos como perigosos, com foco em abordagens e na prisão em flagrante de jovens pobres e negros, causando superlotação nos presídios e crescimento da letalidade policial. Já a polícia judiciária, a Polícia Civil, responsável pela investigação criminal, perdia cada vez mais espaço e prestígio.
Havia uma crença por parte da sociedade e das instituições de que a violência policial podia produzir ordem e obediência nos bairros pobres. A violência era vista como uma solução, não como um problema; a forma mais eficiente de proteger as populações dos bairros centrais da ameaça vinda da parte pobre da cidade. Essa perspectiva se refletia nos números. Em 1960, São Paulo tinha registrado apenas um homicídio praticado pela polícia. Cinco anos depois, foram dois. Os registros oficiais saltaram para 59 em 1975, nove anos depois de a Ditadura Militar assumir o comando do país. Os números começam a aumentar aceleradamente nos anos 80, puxados principalmente pelas ações da Rota – a tropa de elite de São Paulo. De janeiro a setembro de 1981, apenas os 720 policiais da Rota mataram 129 pessoas. Quase a totalidade das mortes era de moradores das periferias.
Isso sem contar os assassinados pelo esquadrão da morte, formados por policiais matadores de São Paulo e do Rio nos anos 60 e 70, que executaram centenas de suspeitos. Também havia a ação de grupos de extermínios e de justiceiros, vigilantes civis apoiados por policiais, que não constavam em registros. Os casos oficiais de homicídio policial continuaram a aumentar mesmo depois de restaurada a democracia, sem controle das instituições. As ocorrências eram dissimuladas, registradas como legítima defesa, sob a alegação de que a vítima havia disparado antes do policial atirar. Quase todas as ocorrências acabavam sendo arquivadas a partir do depoimento do policial, que alegava inocência, sem passar por qualquer investigação.
Dessa maneira, os homicídios foram se tornando um instrumento cada vez mais recorrente nas ações de segurança pública. Em 1985, já sob um governo democrático, o total de mortos pela polícia em São Paulo já havia alcançado 583 ocorrências. O ápice do descontrole foi durante o governo de Antonio Fleury Filho, com 1.140 homicídios em 1991. No ano seguinte, quando aconteceu o Massacre do Carandiru (ocorrência em que 111 presos foram executados por policiais dentro de um presídio), a polícia paulista matou 1.470 pessoas, um recorde histórico que nunca mais foi ultrapassado. Entre 1981 e 2005, 14.216 civis foram mortos pela polícia paulista.
O Primeiro Comando da Capital nasceu em 1993, um ano depois do Massacre do Carandiru, nesse cenário de abusos e excessos, sob o lema de que o crime deveria se unir para enfrentar seu inimigo principal, a polícia e o Estado. A ilegalidade usual da polícia motivava o discurso de união dos criminosos. A facção cresceu e se fortaleceu durante os anos 90, quando o sistema penitenciário estava em expansão. Eles passaram a atuar no tráfico de drogas e a controlar o interior das prisões paulistas, usando telefones celulares para ampliar sua influência nos bairros pobres de São Paulo.
Até 2001, o estado negava a existência do PCC, dizendo que era sensacionalismo da imprensa. A situação só mudou depois da primeira megarrebelião, em fevereiro de 2001, com o levante simultâneo em 30 presídios. Não era mais possível negar a existência do grupo.
O GRADI nasceu para dar uma resposta às ações do PCC. A Polícia Militar assumiria informalmente o papel da polícia judiciária e, junto com o governo de São Paulo, praticaria diversas ilegalidades a fim de investigar e eliminar os suspeitos. Essa guerra desordenada contra o crime não funcionou. Sem inteligência ou troca de informação entre as instituições, o PCC deu novos passos. Continuou a crescer e passou a atuar no mercado atacadista de drogas, alcançando fornecedores na América do Sul para vender drogas e armas para outros estados e países.
A aposta na guerra ao crime continuou em 2011, quando o Ministério Público – que deveria atuar no controle externo da violência policial – passou a compartilhar dados de inteligência obtidos através de escutas dentro e fora dos presídios com policiais militares da Rota – mais uma vez a famigerada tropa de elite paulista. O compartilhamento desses dados promoveu uma série de execuções de suspeitos que levaram os criminosos da facção a se vingarem e ao longo de 2012 e matarem mais de 100 policiais. Execuções em massa também haviam ocorrido em maio de 2006, depois dos ataques do PCC a agentes de segurança. Em respostas, na semana que se seguiu, dezenas de pessoas foram assassinadas nas periferias paulistas, em casos que permaneceram imunes e sem investigação. Policiais à paisana foram apontados como suspeitos em dezenas de ocorrências. Tamanha covardia e impunidade motivou a formação do grupo Mães de Maio, organizado por mães de vítimas de violência policial.
Essa mentalidade de guerra ao crime nos bairros pobres das cidades brasileiras se espalhou pelo Brasil, em políticas de segurança pública que também apostaram no patrulhamento ostensivo e na prisão em flagrante feitos pelas polícias militares estaduais. O resultado foi aumento da violência policial, prisões superlotadas e mais de 50 gangues prisionais em todos os estados, gerenciando o tráfico e outras atividades a partir das prisões, mimetizando o modelo criado pelo PCC.
Como resultado dessa estratégia de segurança, os homicídios praticados pela Polícia Militar também cresceram no Brasil. As mortes em supostos confrontos passaram de 3.330 em 2015 para 6.160 em 2018, ficando nos últimos quatro anos sempre acima da casa das 6 mil ocorrências.
Além da grande quantidade de vítimas fatais, de injustiças e de tragédias familiares, a tolerância a esses homicídios policiais tem levado os estados a perderem o controle de suas polícias militares. A violência policial é irmã da corrupção. Quase sempre, o policial que tem autorização velada para matar acaba usando esse poder para enriquecer com o crime. A violência policial foi uma das sementes das milícias no Rio de Janeiro, facção formada por policiais que se tornou a mais poderosa do Estado. O modelo das milícias – parcerias da polícia com o crime – passou a se espalhar pelos estados.
O controle da violência policial deve ser prioridade política para que os governos retomem o controle de suas polícias. Reduzir os homicídios policiais significa controlar a polícia e reduzir seu papel no fortalecimento do crime. Além das corregedorias e ouvidorias, a investigação dos governos pode ser pró-ativa e centrada em batalhões com taxas de letalidade acima da média. Os governos precisam assumir a convicção de que polícia que mata muito é incompetente, descontrolada e corrupta. O uso das câmeras nos uniformes em São Paulo tem apresentado resultados positivos e aumentado o controle sobre a atividade policial. É uma experiência que merece atenção, prosseguimento, e deve ser replicada em outros estados. O lobby para interrompê-la, contudo, já é forte. Muita gente ganha dinheiro e poder político com o medo, a sensação de insegurança e a promessa de guerra contra o crime nas cidades. É preciso avançar, sempre atento aos riscos de retrocessos”.
Bruno Paes Manso é coordenador do Observatório da Segurança em São Paulo.*