Rede de Observatórios de Segurança

Mata-se crianças e mulheres grávidas

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event 9 de junho de 2021

Felipe da Silva Freitas*

Horas antes de ser morta pela polícia, Kathlen festejava nas redes sociais a espera pelo seu bebê. ‘Bom dia neném’, postou a grávida horas antes de ser baleada. O crime aconteceu no Complexo do Lins, no Rio de Janeiro, na terça-feira, dia 8. O caso mostra que a violência policial no Brasil ultrapassa todos os limites. Os dados são assombrosos e desconhecem freios, leis ou decisões judiciais.

De acordo com o Monitor da Violência, entre janeiro e março de 2021, mesmo com as medidas de distanciamento social, o país registrou a impressionante marca de 10.663 mortes violentas. Nesse número são contabilizadas as vítimas de homicídios dolosos (incluindo os feminicídios), latrocínios e lesões corporais seguidas de morte. Se somarmos as vítimas de mortes em intervenção policial torna-se bem maior.

Em geral, as vítimas destes massacres são jovens-homens-negros, sobretudo entre 18 e 25 anos, moradores das periferias urbanas e acusados (ou não) de envolvimento com o varejo ilegal de drogas. Todavia, parece que há mais tragédia nesse cenário do que uma rápida observação pode demonstrar. Sem reduzir as taxas escabrosas de letalidade deste grupo de jovens negros do sexo masculino, o Brasil mata também crianças e mulheres grávidas, vítimas de malfadadas ações policiais.

Na última sexta-feira, dia 4, no bairro da Liberdade, em Salvador, histórico reduto da resistência negra soteropolitana, Maria Célia de Santana, de 73 anos, e Viviane Soares, de 40 anos, foram também vítimas de disparo policial enquanto conversavam na porta de casa. Viviane havia perdido meses antes um sobrinho, Railan, de 7 anos, morto a tiros no mesmo local, em novembro de 2020 em uma ação policial. As tragédias se acumulam e aniquilam sucessivamente as trajetórias.

Semanas antes, no dia 17 de maio, Jussileni Santana Juriti, de 26 anos, estava sentada na porta de casa brincando com seus dois filhos e conversando com as vizinhas, quando foi atingida por três tiros disparados pela Polícia Militar no bairro de São Tomé de Paripe, em Salvador-BA. Seu terceiro filho, ainda na barriga, morreu na hora. Ela estava grávida de oito meses e durante a recuperação da grave cirurgia a que fora submetida relatou que não quer mais ter filhos porque teme não conseguir superar o trauma da perda atual.

Os relatos estão longe de serem apenas fatos isolados. De acordo com o Instituto Fogo cruzado no Rio de Janeiro, 15 grávidas foram atingidas em operações policiais desde 2017. Em 2021, sete crianças foram atingidas por disparo de arma de fogo no grande Rio de Janeiro. Na Bahia, de acordo com o Monitor da Violência, no primeiro trimestre de 2021 o estado foi responsável por 13,5% das mortes violentas registradas em todo o país. Como apontou a a Rede de Observatórios de Segurança, só em 2019, registrou-se na Bahia ao menos 650 pessoas mortas por ação policial

Tudo isso com o silêncio obsequioso de parte dos governos, das corregedorias, do Ministério Público e do Poder Judiciário. Nas guerras declaradas – situações limite dos países – os tratados internacionais preveem que crianças e mulheres grávidas devem ser preservadas nos confrontos e que civis devem ser poupados em bombardeios; como num beneplácito humanitário que prestigia o futuro e aponta para a esperança, mesmo em tempos de espadas e canhões. No Brasil, território de massacres e extermínios, a esperança foi posta de castigo e mata-se gente negra de qualquer idade.

*Felipe da Silva Freitas, doutor em direito pela Universidade de Brasília, membro do Grupo de Pesquisa em Criminologia da Universidade Estadual de Feira de Santana e diretor da Plataforma Justa

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