Rede de Observatórios de Segurança

Os fenômenos da violência além dos dados oficiais

event 23 de novembro de 2019

O que se esconde na base do iceberg 

Por Silvia Ramos

Os homicídios são a ponta do iceberg da violência no Brasil. Onde os homicídios são frequentes também são comuns as lesões corporais, o medo e as ameaças. “Viado tem de morrer!”. “Vagabunda, vai apanhar!”. “Moleque, a polícia vai te pegar!”. “Macumbeira, sai daqui!”. Nas cidades brasileiras, o cotidiano de famílias e instituições é assombrado por frases como estas. E, quando a palavra vira gesto, adolescentes, mulheres, indivíduos LGBT, negros, crianças e idosos tornam-se vítimas de espancamentos, tentativas de morte e assassinatos. 

Esses crimes, que atingem milhares de brasileiros e brasileiras, na maioria das vezes sem mediação ou resolução, compõem a base do iceberg da violência no Brasil. Tendem a ser minimizados, mas contribuem para criar um contexto e uma cultura de violência que nos permite banalizar até mesmo o fenômeno extremo – a morte violenta. Não à toa, convivemos com naturalidade em face dos homicídios – principalmente se suas vítimas forem sempre as de sempre: jovens pobres e negros, moradores das áreas mais pobres das cidades. 

Uma pequena parte dessas violências cotidianas alimenta as estatísticas ao serem registradas em Boletins de Ocorrência (BOs). Quando são crimes sem letalidade, raramente geram inquéritos investigados pelas Polícias Civis e Ministérios da Justiça. 

A Rede de Observatórios foi criada na tentativa de mapear a parte invisível dessa montanha de agressões e hostilidade. É uma experiência que procura monitorar e acompanhar diariamente os fenômenos da violência não só a partir da leitura atenta e crítica dos números oficiais das polícias – homicídios, mortes por ação policial, crimes contra o patrimônio –  mas também roubos de veículos e roubos de rua. A Rede capta informações que não são incorporadas aos registros oficiais, como as relacionadas aos crimes contra indivíduos LGBT+; racismo; violências contra mulheres, crianças e adolescentes; violências dentro de sistemas penitenciários e socioeducativos; violência armada; ataques; linchamentos; chacinas e as muitas variações de fenômenos associados ao policiamento, como operações, corrupção e mortes de agentes.

Criada em maio de 2019 em cinco estados – Bahia, Ceará, Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo – a Rede de Observatórios combina em sua concepção o reconhecimento da relevância dos fenômenos de violência e criminalidade, a diversidade social, cultural e política entre as unidades da federação e a importância da presença de parceiros locais. A experiência da Rede não está centrada numa coleção de números. Sabemos que captamos uma parte dos fatos violentos que ocorrem na sociedade. Priorizamos o entendimento, a análise e a comunicação sobre os fenômenos da violência e da segurança.

 Em um estado, homicídios e roubos podem ter diminuído em relação ao ano anterior, mas a vida nas periferias está mais difícil, porque os tiroteios e as operações policiais letais aumentaram. Em outro estado, as mortes violentas caem, mas o número de feminicídios, principalmente no interior, impressiona. Em um terceiro, roubos de carros são reduzidos, mas ataques de facções do crime levam medo à maioria dos bairros. E, em muitos locais, grupos paramilitares agem em silêncio: olhar apenas os números dificilmente revelará o crescimento desse fenômeno que hoje preocupa o país. 

Essas percepções só são possíveis pelo fato de mantermos analistas locais extremamente antenados não só em relação aos dados, mas principalmente às informações que circulam nas redes. Faz parte do trabalho desses pesquisadores o diálogo e a troca de informações com outras entidades da sociedade civil, coletivos de bairros, grupos de mães, defensores, pesquisadores, policiais e mídia. Não por acaso, as organizações que formam as redes contam com integrantes com um histórico de atuação na sociedade civil. Nos cinco estados, os observatórios vêm dialogando de perto com iniciativas como o Fórum Popular de Segurança Pública, no Nordeste; a campanha Mobilização Nacional em Defesa da Vida; a Rede Fluminense de Pesquisa e a articulação de várias organizações pela redução da violência policial no Rio de Janeiro; e a discussão sobre política de drogas na Bahia.

Depois dos cinco primeiros meses captando fenômenos de violências cotidianas que não estão nos registros oficiais, os resultados iniciais são tão estimulantes que podemos dizer: nós só estamos começando. 

Nosso método de monitoramento diário

Em cada estado de atuação da Rede, uma instituição ou entidade ou grupo de pesquisa já existente criou ou reforçou uma equipe para monitorar e recolher diariamente informações sobre violência e segurança dos principais jornais, portais de notícias, grupos de WhatsApp e Telegram, contas no Twitter e páginas no Facebook. Além dos pesquisadores humanos, contamos com “robôs” (bots) que percorrem diariamente redes de informação e redes sociais. Os pesquisadores seguem protocolos comuns e em cada estado há uma lista obrigatória de fontes a serem visitadas diariamente. 

 O acompanhamento cotidiano das notícias é uma parte trabalhosa e onerosa do monitoramento, porém crucial. Sem a pesquisa permanente nas fontes, seria fatal perder informações no fluxo intenso de casos de crime e violência que ocorrem todos os dias, reportados por esses veículos e muitas vezes apagados das páginas de internet. Não é tarefa simples recuperar o que ocorreu no passado. 

Antes do início do monitoramento, em 1º de junho, todos os pesquisadores dedicados a esta tarefa diária foram treinados para classificar as informações nas categorias e nas subcategorias previstas. Além desta classificação, eles preenchem informações como sexo, idade, cor e orientação sexual de vítimas e agressores; local da ocorrência; possíveis motivações; meios utilizados para o ato violento; e, principalmente, uma breve descrição do fato. Os dados alimentam um banco de dados atualizado automaticamente.

 A pesquisa busca capturar as dinâmicas dos fenômenos observados. Por exemplo, se um policial foi morto ou ferido, registraremos a informação se o fato ocorreu em serviço ou fora dele; se há evidências de que a morte ou a agressão se deu em confronto, em assalto ou resultou de vingança ou execução; se era um policial civil ou militar etc. Neste caso, além do número de policiais vítimas de violência, poderemos compreender como as violências contra agentes ocorrem. Nunca registramos simplesmente um número. Sempre classificamos os fenômenos. Cada entrada do banco de dados da Rede de Observatórios corresponde necessariamente a um conjunto de informações que permite compreender, mesmo que de forma inicial, os fenômenos que acontecem em cada um dos estados.

Outro detalhe importante do monitoramento é que cada registro do banco de dados é baseado em pelo menos duas fontes. Isto assegura que as informações obtidas em redes como WhatsApp, Telegram etc. sejam confirmadas e complementadas. Para a análise de fenômenos como o feminicídio, por exemplo, é importante ter acesso a diversas fontes, pois só analisando um conjunto robusto de informações se pode concluir se aquela morte foi motivada por questões de gênero. 

O levantamento das informações também é enriquecido pelos insumos de uma rede de fontes informais, que não monitoramos regularmente: televisão, grupos de bairros e de pesquisa, universidades, ONGs e familiares. Por isso, ao planejarmos a Rede, decidimos que o monitoramento seria realizado em cada estado. Os pesquisadores dos Observatórios são antenas locais que captam informações e elaboram análises. Ligados a grupos de ativismo e pesquisa, em conexão com a sociedade e com jornalistas especializados, eles usam esse conhecimento sobre seus estados para produzir análises sobre violência, polícia e segurança. 

Os pesquisadores conversam permanentemente entre si e com frequência chamam a atenção para fenômenos locais que devem se tornar pontos de observação de toda a Rede. Nessas trocas diárias, eles discutem como abordar casos que desafiam os protocolos construídos no início do trabalho da Rede e compartilham casos emblemáticos, como o do jovem torturado em um supermercado de São Paulo ou a morte de Juan, jovem cearense de 14 anos baleado durante uma abordagem policial. O debate e o engajamento em relação a esses casos dão forma, cor e nome ao que seria apenas estatística, contribuindo para que tais fenômenos sejam compreendidos pelos pesquisadores e coordenadores. 

Nossa experiência, depois de cinco meses, confirma: não é possível substituir grupos de pesquisa e de ativismo local por ferramentas de pesquisa na internet, algoritmos e “robôs”. Estas ferramentas têm sua importância, mas são uma pequena parte do nosso monitoramento diário.

Uma palavra sobre números, BOs e LAIs

Os chamados dados oficiais sobre violência são criados a partir de registros (ou boletins) de ocorrência realizados em delegacias da Polícia Civil (na maior parte) por residentes ou pelos próprios policiais militares (por exemplo, no caso de homicídios). Os BOs (Boletins de Ocorrência) ou ROs (Registros de Ocorrência) formam uma imensa base de dados que, dependendo do estado, é mais bem ou menos bem organizada. Na maioria dos estados, esses registros são informatizados, mas até pouco tempo, em muitos lugares, eram feitos em máquinas datilográficas ou à mão e depois contados e repassados para os setores de estatística e as instâncias superiores. Em alguns locais do Brasil, na área de segurança, ainda não há informatização total dos registros. 

Quando uma pessoa chega a uma delegacia, sua queixa é enquadrada em uma categoria criminal ou policial: ameaça, lesão corporal, roubo, furto etc. Só uma parte ínfima dos números totais desses dados é divulgada a cada mês ou a cada três meses, dependendo do estado. Na maioria dos estados da Rede, as secretarias ou órgãos de estatísticas divulgam os dados mensalmente, com algumas diferenças: o estado de São Paulo publica o número de mortos pela polícia em boletins trimestrais; os estados do Ceará e de Pernambuco utilizam a categoria Crimes Violentos Letais Intencionais (CVLI) nos seus relatórios, ao invés de publicarem os números de homicídios, latrocínios e lesões corporais seguidas de morte separadamente. Algumas unidades publicam números de roubos de veículos separados dos roubos de celulares e roubos de rua, enquanto outras juntam vários crimes contra o patrimônio. Infelizmente, ainda são minoritários os estados que publicam um banco de dados completo com as principais ocorrências criminais, com informações de local, data, perfil da vítima etc. A maior parte dos estados divulga boletins, normalmente em formato de PDFs, com tabelas que não permitem cruzar dados para se ter um olhar mais aprofundado sobre determinada área ou um tipo de perfil de vítima

O ponto fora da curva é a Bahia, que não atende minimamente aos critérios desejáveis de transparência na segurança pública. Até a publicação deste relatório, no início de novembro, o último informe publicado pela Secretaria de Segurança Pública da Bahia referia-se ao período de janeiro a junho de 2019. 

É importante lembrar que na área da saúde, por exemplo, isto não ocorre. Mortes por HIV ou por doenças cardiovasculares são classificadas precisamente e de maneira idêntica em todos os lugares do Brasil. As categorias não dependem de secretários de saúde ou de governadores e sua publicação é feita automaticamente pelos sistemas do SUS. 

No caso da segurança, ainda ocorrem interferências de secretários sobre a divulgação de números sobre violência para favorecer os seus governos. No governo de Michel Temer, quando o Ministério da Justiça e Segurança Pública era comandado por Raul Jungmann, foi instituído o Sistema Único de Segurança Pública, o SUSP, com o objetivo de homogeneizar as estatísticas criminais dos estados, dando celeridade e sistematicidade à publicação dos dados. Infelizmente, o SUSP ainda é mais uma ideia no papel do que um sistema. 

Como dissemos acima, além das informações agregadas (crimes contra a vida e contra o patrimônio) publicadas pelos governos, há milhares de registros nas bases policiais que raramente são divulgados. É o que se dá, por exemplo, nos casos de feminicídio, violência contra LGBT+, racismo, violências contra crianças e adolescentes, ou mesmo chacinas. Para conhecer essas informações, pesquisadores e ativistas têm de fazer pedidos especiais de dados via Lei de Acesso à Informação em portais estaduais. As respostas a esses pedidos às vezes chegam no tempo previsto, 20 dias úteis (prorrogáveis por mais 10). Mas também podem ser negados ou demorar muito tempo. O acesso cidadão aos dados de segurança é um tema-chave da Rede de Observatórios. Buscamos, junto aos nossos parceiros, estabelecer uma rotina de solicitações de informações por LAI que obrigue os estados a fornecerem dados que, aliás, não pertencem aos governos, mas são públicos.

Quando conseguimos acessar os “microdados” das ocorrências policiais (registro por registro, com informação sobre sexo, idade, local etc.), muitas vezes nos surpreendemos com o fato de os registros serem escassos e incompletos. Em entrevista, um delegado da DECRADI (Delegacia de Crimes raciais e Delitos de Intolerância) do Rio de Janeiro explicou: “o que chega para mim como violência LGBT, racismo e intolerância religiosa é uma parte ínfima do que ocorre. Quase sempre são conflitos intrafamiliares. Pouca gente está disposta a entrar na delegacia e fazer um registro. Quando fazem, é porque querem que a polícia interfira para aquela ameaça parar”.

Efetivamente, como veremos nos indicadores selecionados, não são só os registros policiais que são escassos, mas também as informações que circulam cotidianamente. A despeito da repercussão de alguns casos, o volume de acontecimentos divulgado no dia a dia é pequeno e não corresponde a uma amostra representativa do que se passa na realidade. Julgando pela quantidade de registros na imprensa, ninguém diria que vivemos no país em que vivemos, profundamente mergulhado na reprodução de dinâmicas racistas. O mesmo ocorre em relação à violência contra indivíduos LGBTI+ e à intolerância religiosa.  

Ainda assim, é com base nessas informações que temos buscado compreender o que acontece nestes cinco estados. A seguir, as equipes de cada estado analisarão os dados oficiais e o contexto da segurança pública e da violência local. Eles também relatarão brevemente algumas das iniciativas da sociedade civil relacionadas à violência e à segurança. Na última parte, discutiremos o que podemos inferir dos indicadores não oficiais, eventos monitorados exclusivamente pela Rede de Observatórios. 

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