Paraisópolis, Fortaleza, Brasil
Por Ricardo Moura*
A morte de nove pessoas durante a realização de um baile funk na Favela de Paraisópolis, em São Paulo, não representa apenas um caso isolado ou circunscrito à capital paulista. Manifestações culturais oriundas da periferia são reprimidas com maior ou menor violência em todos os cantos do Brasil, não importando o nome que tenham: saraus, rolezinhos, fluxos… Aqui mesmo em Fortaleza, o adolescente Juan Ferreira dos Santos, 14, foi morto há três meses pela PM com um tiro na cabeça durante a realização de uma festa na Praça do Mirante, no Vicente Pinzón.
A repressão desproporcional a esses tipos de movimentos é o sintoma de um fenômeno que vai além do preparo profissional dos agentes. A polícia, no Brasil, atende primordialmente a uma demanda pela manutenção da ordem. Em um país extremamente desigual como o nosso, o ordenamento social passa pela definição de lugares demarcados, algo tão naturalizado em nosso cotidiano como os elevadores “social” e de “serviço”. Os corpos que ousam infringir essa apartação territorial sofrem todo e qualquer tipo de sanção imaginável.
Apesar de a Constituição Federal afirmar, em seu artigo 144, que a segurança pública é “dever do Estado, direito e responsabilidade de todos”, o que mais vemos na prática são políticas de segurança de contenção social nas quais determinadas áreas da cidade contam com maior recursos e proteção que as demais. Basta lembrar que uma das medidas de segurança mais festejadas pelo atual governo, o videomonitoramento, foi implementada inicialmente na orla da avenida Beira Mar para só depois ser expandida a outros bairros.
A segregação urbana completa só é realizável em condomínios fechados de luxo. O mais comum é a existência de assentamentos precarizados dividindo espaço com apartamentos e casas; becos e frestas ínfimas dividindo quarteirões; arranjos habitacionais compondo uma paisagem urbana que vai do alto luxo à mais renhida miséria em uma única rua. Lidar com a tensão provocada por tantos contrastes é o que denomino de “política de segurança de contenção”.
É preciso evitar que a panela de pressão social exploda e a responsabilidade para evitar que isso aconteça recai sobre os ombros dos policiais. O resultado do cumprimento dessa “função” social por parte da polícia, contudo, nem sempre termina sem danos a quem a instituição também deveria proteger.
O cenário que se avizinha não oferece mostras que essa situação irá mudar. Pelo contrário. Dados do IBGE revelam que o Índice Gini – que mensura a concentração de renda – atingiu seu maior patamar nos últimos dois anos. A renda dos 30% que ganham menos de um salário mínimo por mês caiu, enquanto os ganhos dos 1% que recebem acima de R$ 27,7 mil mensais subiram. A deterioração das bases econômicas vem gerando protestos em toda a América Latina com consequências ainda desconhecidas. Quando essa onda de indignação chegar ao Brasil, adivinhe quem cerrará fileiras para reprimir qualquer possibilidade de protesto?
Há um segundo componente tão importante quanto a desigualdade social em relação ao que aconteceu em Paraisópolis. A perseguição a determinados estilos musicais não é uma prática recente. O samba era compreendido como uma “vagabundagem” em seus primórdios, fazendo com que músicos fossem presos simplesmente por portar instrumentos musicais como um pandeiro. O funk ocupa o espaço atual de “ameaça” no imaginário social. Em Fortaleza, no começo dos anos 2000, os bailes foram proibidos por meio de uma portaria da Polícia Civil sob o argumento de “incitação à violência”.
A discriminação racial é um componente comum em ambos os casos. Tanto o samba quanto o funk são estilos essencialmente vinculados à cultura negra. São ritmos que surgem e se disseminam nos morros, becos e vielas das periferias das cidades e sofrem preconceito justamente por isso. Fechar os olhos para o caráter seletivo do Estado na repressão a tais movimentos é querer negar nossa herança de séculos de escravidão que ainda hoje possui raízes vigorosas na sociedade.
Por causa disso, ainda possuímos uma mentalidade escravocrata e os órgãos de segurança espelham essa condição. Qualquer tentativa de encarar esse debate de forma consequente precisa enfrentar o racismo como elemento fundante da nossa estrutura social. Paraisópolis. Fortaleza. Brasil. Os lugares mudam, mas a nossa trágica realidade permanece a mesma.
* Ricardo Moura é pesquisador do Observatório da Segurança — Ceará e colunista do jornal O Povo