Rede de Observatórios de Segurança

Politização, violência policial e impunidade

event 15 de julho de 2020

Por Ricardo Moura*

A nossa crônica falta de memória é uma aliada com a qual os políticos sempre podem contar. Em uma conversa no Youtube, na semana passada, o governador Camilo Santana (PT) criticou o que denomina de “politização das polícias”, cujo ponto culminante teria sido o motim ocorrido na Polícia Militar em fevereiro. Por certo que se trata de um fenômeno preocupante. No entanto, as medidas adotadas pela atual gestão mais reforçaram do que inibiram essa prática. O resultado é o que se vê nas ruas.

É importante que se esboce uma definição breve do que é politizar algo. Política não envolve apenas a construção de candidaturas tendo em vista uma disputa eleitoral, mas uma ampliação das possibilidades de atuação em prol da realização de demandas específicas. Dotados de um capital político que só cresce, os policiais obtiveram diversas conquistas durante o Governo Camilo. Uma delas, por exemplo, é poder se manifestar fechando vias públicas sem serem incomodados, algo que os professores nem em sonhos são capazes.

Para compreender como esse processo de politização se constituiu, voltemos a janeiro de 2015. Camilo Santana assumiu o governo do Estado com um problema imenso em suas mãos: o governador anterior, Cid Gomes, havia perdido a ascendência sobre a PM após a paralisação ocorrida em 2011. Embora os policiais tivessem retomado o trabalho, a relação nunca mais foi a mesma. Desde então, o debate sobre segurança pública se partidarizou em um caminho aparentemente sem volta. O desgaste com a tropa certamente contribuiu para que o Ceará registrasse um aumento na violência letal, batendo recordes históricos de homicídios.

Reestabelecer o diálogo e se impor aos comandados eram as duas tarefas mais urgentes de Camilo ao assumir o cargo. Não à toa, um de seus primeiros compromissos públicos foi justamente uma reunião com o principal representante da categoria: o então deputado estadual Capitão Wagner (PR). O ambiente era tão cordial que o ex-secretário da segurança Delci Teixeira afirmou, naquela ocasião, que o militar não era um “inimigo” e que precisava “ser respeitado”.

O movimento de distensão política foi visto com bons olhos, permitindo que o novo governador pudesse conduzir a política de segurança pública com mais tranquilidade que seu antecessor. A estratégia iniciada em um gesto de diálogo, contudo, assumiu os contornos de uma perigosa condescendência. O ponto de virada foi o modo pouco enfático com que o governo estadual repudiou publicamente a participação de policiais na Chacina do Curió. A sinalização dada naquele episódio e na de muitos outros que vieram a seguir foi a de que a violência policial não seria punida com o rigor devido.

A nomeação de André Costa à frente da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS) só acentuou essa percepção. A corporação ganhou uma série de benefícios até então inéditos ao longo dos últimos três anos. Na gestão Camilo, a PM “empoderou-se” para nos valermos de uma expressão da moda. Importa registrar que a mesma atenção não se estendeu à Polícia Civil.

O assassinato de Mizael, um adolescente de apenas 13 anos, pela Polícia Militar sintetiza bem a atual situação da política de segurança pública no Ceará. Não há menção alguma ao caso nos perfis do Twitter tanto do governador quanto do secretário. Nem um gesto de solidariedade à família e muito menos a repreensão pública do ocorrido. Em abril, as mortes por intervenção policial bateram o recorde histórico para um só mês e quase ninguém se importou com isso.

Moradores bloquearam ruas do bairro de Chorozinho após a morte de Mizael

Contar com a certeza da impunidade também é um ganho político nada desprezível. A Controladoria-Geral de Disciplina (CGD) perdeu muito de sua eficácia no governo atual. As chances de casos como o de Mizael resultarem em punição são ínfimas. Como bem revelou o repórter Lucas Barbosa, do O POVO, nenhum dos 51 registros de mortes por intervenção policial em 2019 chegou ao menos a ser denunciado formalmente.

O que começou como uma espécie de tratado de cessar-fogo se perdeu em meio ao processo de polarização ideológica vivido pelo País entre 2015 e 2016. A origem da “politização da polícia”, em seu estágio atual, remonta a esse momento histórico. As corporações militares estão no centro dessa oposição. Prova disso é que todo o esforço governamental de atender às demandas da tropa, contudo, não impediu que alguns policiais militares se amotinassem. A questão de fundo há muito havia deixado de ser apenas as condições de trabalho. A pauta agora era fortemente influenciada pela ideologia. Daí a queixa pública do governador.

A crítica à politização não deixa de ser uma tentativa de mudar o foco sobre a percepção cada vez mais crescente de que os índices de criminalidade e violência pioraram durante a pandemia. O capital político obtido por Camilo Santana no período de isolamento social é um trunfo perecível. Em algum momento, a prevenção ao Covid-19 deixará de ser a principal pauta e então chegará a hora de o Governo ser avaliado pelo que fez e, principalmente, pelo que deixou de fazer na área da segurança pública.

*Pesquisador do Observatório da Segurança do Ceará. Esta coluna foi publicada originalmente no jornal O Povo

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