Uma democracia crivada de balas
Por Ricardo Moura*
Em Bauru, um professor universitário foi chamado de “macaco” e esfaqueado. Em Niterói, uma moradora de rua foi executada a tiro por um comerciante sob o “crime” de lhe pedir dinheiro. No Congresso, um deputado rasgou uma charge política denunciando práticas de violência policial contra a população negra. Em Maranguape, dois adolescentes foram linchados pela população e tiveram seus corpos queimados após assaltarem um mercadinho. O noticiário está repleto de episódios de violência em que a causa motivadora é o ódio, seja qual for seu matiz: contra negros, mulheres, LGBTs ou adolescentes em conflito com a Lei.
Se o assassinato é a forma mais extrema de violência, os discursos de ódio são a porta de entrada para o processo de desumanização das vítimas em potencial. O preconceito e a misoginia, que estiveram escondidos nos porões durante um bom tempo, circulam hoje de modo sem-vergonha nas ruas e nas redes sociais, como um pus que estoura no tecido social.
É preciso que a sociedade repudie esses casos veementemente, sob o risco de que a própria democracia entre em colapso. Não estamos tratando de crimes contra indivíduos isolados, mas da própria condição de existência em sociedade. Se tais atos não forem punidos de forma devida, a mensagem que iremos passar é a de que tudo é possível e que as vidas de determinadas pessoas não possuem valor algum. A liberdade de expressão não pode ser confundida com a liberdade de destilar ódio em estado bruto.
Enquanto isso, o extermínio se institucionaliza como prática política. A criação de um partido que prega abertamente o uso de armas de fogo sob a chancela de valores fundamentalistas e nacionalistas vai de encontro a uma sociedade que se pretende democrática e inclusiva, que tem como um de seus objetivos constitucionais “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (Art. 3º, inciso IV).
As propostas de elaboração de uma nova Constituição são coerentes com essa nova sociabilidade excludente que se tenta implementar, falsamente associada ao conceito de meritocracia. Nesse novo cenário que se desenha, as vidas humanas não são mais um valor em si, podendo ser descartadas ao bel prazer dos cidadãos de bem, cujo gosto pela morte parece ser insaciável. O que se quer é uma Carta Magna Necropolítica que confira licença para matar os indesejáveis sob a retórica populista da “defesa da vida e da legítima defesa”.
Não à toa, um novo projeto de excludente de ilicitude foi encaminhado pela Presidência da República ao Congresso Nacional. A proposta prevê que soldados e policiais que matem sob “medo, surpresa ou violenta emoção” possam ter suas penas reduzidas pela metade ou que elas deixem até mesmo de serem aplicadas. Como é possível mensurar categorias tão subjetivas como medo e violenta emoção? O risco de que a simples autodeclaração de tais sentimentos seja suficiente para se livrar de uma investigação não pode ser descartado. Trata-se de uma medida com forte inspiração corporativista que, na prática, deverá ampliar ainda mais a impunidade em relação às mortes causadas por intervenções policiais.
As lideranças políticas, os meios de comunicação e as forças vivas da sociedade civil têm de se manifestar publicamente sobre o que está acontecendo. O que vemos, contudo, é um silêncio que normaliza a barbárie em nome seja de interesses econômicos seja de cálculos políticos visando, talvez, as próximas eleições. A intolerância se manifesta com muita desenvoltura nesse vácuo, fincando raízes cada vez mais profundas no solo de nossa sociabilidade. Se opor a esse processo não é uma questão de ser de direita ou de esquerda, mas de defesa das bases civilizatórias de uma nação.
Foi por meio desse mutismo cúmplice que muitos regimes sanguinários se instalaram sob o assentimento difuso de populações inteiras. Nessa toada, chegará o momento em que finalmente daremos conta da gravidade de tudo que está ocorrendo e do quanto perdemos em termos da capacidade do exercício da cidadania. Mas aí será tarde demais: nossa jovem democracia estará estendida em uma rua qualquer, crivada de balas e ferida de morte.
*Ricardo Moura é pesquisador do Observatório da Segurança Ceará