A sua fé é melhor que a minha?
Por Larissa Neves e Wellerson Soares*
“Iniciou a viagem, eu saí do Terreiro de Jesus e, ainda no Pelourinho, ele perguntou para onde eu ia. Eu falei que eu ia pra sede do bloco Ilê Aiyê. Ele falou: ‘ah, meu carro está com problema’. Eu respondi que tudo bem. Ele virou e disse: ‘eu não levo gente da macumba no meu carro, não”. O relato de Caroline Xavier, 24 anos, é de quem não esperava que seria vítima de racismo religioso no trajeto para o concurso Noite da Beleza Negra, do qual era uma das candidatas a Deusa do Ébano. Esse é um dos quatro casos ocorridos na Bahia em menos de três meses de 2023.
O estado da Bahia é considerado o maior em número de praticantes de candomblé e quem dá origem ao cenário religioso atual do Brasil. Porém, isso não impediu que nos primeiros dias do ano um terreiro de candomblé fosse invadido e destruído, na cidade de Vitória da Conquista. Três dias depois, o terreiro Unzó Matamba Jesimesi, em Camaçari, foi alvo de ataques e destruição de imagens por dois policiais, em uma disputa pela propriedade. Em fevereiro, portas arrombadas e objetos quebrados foram o cenário que religiosos encontraram ao chegar no terreiro Ilê Asè Airá Tolami, em Dias D’Ávila, Região Metropolitana de Salvador.
O cenário de destruição e intolerância parece remontar séculos anteriores, quando em 1890 o Código Penal enquadrava práticas religiosas de matriz africana. Quase um século depois, em 1976, os terreiros precisavam pedir autorização policial para realizar suas atividades. Desde então, a discussão avançou, mas os estigmas permanecem e volta e meia ganham grande repercussão quando envolvem famosos, como aconteceu recentemente entre os participantes do Big Brother Brasil. A participante Key Alves negou ter cometido racismo e, sim, intolerância religiosa e acusou Fred Nicácio de estar “levando a discussão para outro rumo”.
Mas qual a diferença entre intolerância religiosa e racismo religioso? Segundo o professor e babalorixá, Sidnei Nogueira, autor do livro ‘Intolerância Religiosa’, a diferença da intolerância religiosa para o racismo religioso se dá quando entra em cena o componente racial. Praticantes de crenças europeias, como o cristianismo e o catolicismo, não sofrem perseguições atreladas à cor ou raça. Ou seja, não há componente racial em casos de intolerância religiosa contra evangélicos e católicos.
Dessa forma, o racismo religioso é perverso e se manifesta de diversas formas, principalmente na desumanização e demonização de corpos pretos que cultuam seus costumes originários. O racismo se expressa historicamente em discriminações baseadas nas características físicas de determinados grupos, mas também na desvalorização e perseguição de suas práticas culturais.
Os candomblés sempre foram espaços onde a sociabilidade, o afeto, a cura estavam presentes. Mas os interesses da elite branca da sociedade brasileira sempre foram combater as bases dessa cidadania considerada diferenciada.
Mesmo a liberdade religiosa assegurada pela Declaração Universal dos Direitos Humanos e o livre exercício religioso garantido pela Constituição Federal, casos de ataques contra religiões não-cristãs seguem crescendo ano após ano no Brasil. Se com a Proclamação da República o estado brasileiro tornou-se laico, por que as religiões de matriz africana seguem sofrendo repressão do Estado e sendo alvos da polícia e de parte intolerante da sociedade racista?
É necessário que o Estado brasileiro vá além do acordo de reparação histórica em favor das religiões de matriz africana, assinado pelo ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida. É preciso uma intervenção mais efetiva para assegurar a liberdade religiosa e o respeito, para que terreiros não sejam destruídos e pessoas que apenas querem exercer sua fé não sejam punidas, atacadas ou mortas.
Larissa Neves é pesquisadora do Observatório da Bahia
Wellerson Soares é jornalista da Rede de Observatórios