As muitas faixas de Gaza do Brasil
Por Ricardo Moura*
Assistimos, horrorizados, às imagens da violência que atinge palestinos e israelenses. São muitas as cenas de destruição, crianças em pânico e famílias inteiras tentando fugir, em desespero, de locais onde a morte se conta às centenas.
Há algo muito errado quando vemos a dificuldade enfrentada pelas Nações Unidas em promover um cessar-fogo entre as partes. Os múltiplos interesses em disputa na região impedem uma saída pacífica para um problema que se arrasta por anos.
No entanto, mesmo em meio a essa enxurrada midiática, cabe um apelo para que possamos nos debruçar sobre o morticínio cotidiano existente no Brasil. Somos, sim, um país extremamente violento e beligerante. O que nos divide, contudo, é o fosso da desigualdade social, perpassado por elementos racistas, que se instalou desde a época da colonização.
Trata-se de um processo de desumanização também, mas que opera sob bases distintas. Os “animais humanos” que precisam ser abatidos em nosso país – parafraseando a frase racista do ministro da defesa israelense Yoav Gallant – são aqueles, justamente, que vêm das populações mais vulneráveis, ou seja, de quem mais precisa do apoio das políticas públicas estatais.
Assim como ocorre no fragmentado território palestino, temos no Brasil diversas “faixas de Gaza” espalhadas nos pontos mais violentos e nos assentamentos mais precários de nossas periferias. A menção não é despropositada. As áreas de maior risco à segurança nas comunidades recebem essa denominação dos próprios moradores, que precisam elaborar uma geografia particular dos locais menos e mais seguros para se locomover. É uma tática de sobrevivência que pode significar a diferença entre a vida e a morte para quem a desconhece.
É assim que alguns dos territórios de exceção são popularmente conhecidos, tomando de empréstimo o imaginário de um confronto tão antigo e tão midiatizado que se tornou familiar para cada um de nós. E, como costuma acontecer com as vítimas da Faixa de Gaza original, quem morre nas diversas “faixas de Gaza” brasileiras tem seu luto menosprezado e a perda banalizada.
As vítimas, no interior desses territórios, sofrem um processo de invisibilização. Suas mortes não ocorrem de forma espetacular: por meio de aviões, drones e foguetes cujas trajetórias são monitoradas pela imprensa do mundo todo. Os nossos assassinatos acontecem nos becos, nas vielas e até mesmo na calçada da casa. Quando muito, a ação é registrada por alguma câmera de vigilância e compartilhada nas redes sociais.
De tão insensibilizados, teimamos em não querer saber quem são as pessoas que morrem nas franjas da sociedade. Por falta de maior repercussão social, o sistema de justiça criminal se move morosamente para elucidar tais casos. Quando combinados, esses dois fatores estimulam a impunidade reinante. E assim vamos vivendo com nossas consciências tranquilas: imersos nas dores alheias e cegos às nossas próprias mazelas.
Ricardo Moura é Consultor para o Nordeste na Rede de Observatórios*