Rede de Observatórios de Segurança

A falácia do “paradoxo das armas”

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event 10 de setembro de 2022

Por Ricardo Moura*

Recebi um artigo que tratava do “paradoxo das armas”, ou seja, que os homicídios caíram no Brasil na mesma proporção em que as licenças para compra de armas de fogo aumentaram, como se houvesse alguma correlação entre os dois fenômenos. A tese defendida no texto é que os criminosos passaram a ter mais respeito pelos “cidadãos de bem” pelo simples fato de mais pessoas andarem armadas pelos cantos. Um fato que “a velha imprensa esquerdista” não conseguiria explicar, resultando daí seu caráter paradoxal.

Nos últimos quatro anos, o Governo Federal promoveu um verdadeiro desinvestimento na área da segurança, que cada vez mais perde sua conotação de “pública” para se tornar terceirizada. A propalada expertise na área, uma das promessas de campanha, foi percebida apenas nos acenos às alas mais corporativas, beneficiando aliados e fazendo vistas grossas aos descalabros ocorridos nas corporações, que ganharam uma tácita licença para matar no período. 

As ações integradas com os estados, uma marca do Governo Temer, ficaram apenas na promessa. Nenhum plano nacional foi elaborado, nenhuma medida governamental que tivesse ido além do voo de galinha esboçado na época em que Sergio Moro era ministro. Lembram-se da peleja entre Caucaia e Maracanaú para se tornarem a sede do projeto-piloto do Ministério da Justiça e Segurança Pública? O que resultou de concreto daquele imbróglio?

Desde então, não houve margem nem mais para promessas. Assim como foi dito à população, os governadores tiveram de lidar com a política do “virem-se por si mesmos”. O auge dessa atitude foi demonstrado durante a pandemia. A demora na compra das vacinas colocou em risco severo os agentes de segurança durante a fase mais crítica do isolamento social. 

Muitos policiais morreram infectados pela Covid-19 por estarem na linha de frente das medidas de prevenção ao vírus seja fechando estabelecimentos comerciais seja dispersando aglomerações. Foram vidas perdidas, direta ou indiretamente, pela falta de cuidado com a dignidade humana de quem nos governa. Essa situação, contudo, foi abafada por políticos que diziam representar a categoria por estarem alinhados ideologicamente ao atual governo. A dor da perda de familiares e entes queridos é eterna. É preciso que essa memória não se perca.

O esforço governamental, durante todo esse tempo, deu-se precisamente em desmontar o Estatuto do Desarmamento da forma como pode, atendendo a uma reivindicação da indústria de armamentos não só nacional, mas também internacional, diga-se de passagem. A licença para aquisição de armas de fogo bate recordes ano após ano. O controle estatal sobre a circulação dos armamentos, por sua vez, foi afrouxado por decretos e mais decretos. O mercadão da morte nunca esteve tão aquecido beneficiando até mesmo as organizações criminosas que veem um cenário repleto de facilidades para obter os armamentos desejados.

Como resultado dessa liberação desenfreada, assistimos a diversos “casos isolados” ocorrendo semanalmente em que pessoas são baleadas pelos motivos mais torpes. Na semana passada, um deputado do Avante atirou contra o diretório do PSDB, em uma das áreas mais ricas de São Paulo (SP). As armas têm servido para isso: para intimidar, para causar medo e para lesionar pessoas inocentes. O episódio mais recente aconteceu em um templo de Goiânia (GO): um homem foi atingido por uma bala na perna por um policial simplesmente por ter questionado uma doutrinação partidária disfarçada de pregação religiosa.

Vincular armas de fogo à religião tem sido uma estratégia para tornar essa prática mais tolerável. Não se trata de algo original, mas sim uma cópia do que tem sido feito nos Estados Unidos há décadas. Em uma propaganda política, uma candidata aparece com uma pistola na mão e uma imagem de Nossa Senhora de Aparecida na outra. Não é possível afirmar se o armamento está sendo abençoado ou se a santa está sendo feita de refém. O ridículo da situação nos leva a esses questionamentos.

Atribuir a queda nos assassinatos ao aumento das armas de fogo em circulação encobre o trabalho de inteligência feito nos últimos anos. Diversas operações vêm sendo realizadas com o objetivo de desarticular lideranças e asfixiar as rotas financeiras de grupos criminosos. Tais medidas são muito mais eficazes para a redução da criminalidade e da violência do que um bando de homens brancos e ricos portando pistolas por aí. 

Esse “encobrimento” não ocorre por acaso: ressaltar o trabalho das polícias é ressaltar o trabalho dos governos estaduais. Reconhecer o acerto dos governadores implica estragar a versão difundida à exaustão de que eles são os culpados por tudo o que ocorre de errado no país. Podemos chamar essa estratégia de ideologia, má-fé ou, simplesmente, picaretagem. Em 2019, por exemplo, os assassinatos no Estado do Ceará caíram a patamares semelhantes aos de 2009. Por coincidência, o Flamengo sagrou-se campeão brasileiro nesses mesmos anos. Teríamos então um “paradoxo flamenguista”? Correlação espúria por correlação espúria, só nos resta torcer para que o time rubro-negro vença novamente o Campeonato Brasileiro em 2022.

* Ricardo Moura é jornalista e coordenador do Observatório da Segurança do Ceará. Texto publicado originalmente no blog Escrivaninha.

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