Mortes de profissionais da segurança pública por Covid-19 são invisibilizadas
Por Ricardo Moura*
O sucesso de uma estratégia de isolamento rígido depende muito da fiscalização e da punição exemplar de quem descumpre as medidas. Em uma sociedade perfeita, a população atenderia aos ditames da ciência e se manteria reclusa pelo tempo necessário, com auxílio emergencial, até que os índices de infestação da doença baixassem. No entanto, não é isso que ocorre. Festas clandestinas são realizadas, pessoas se amontoam em espaços fechados e a sensação que temos é que o nosso lockdown não é tão restrito assim.
Por causa da segunda onda da pandemia, Fortaleza teve de passar por um segundo processo de isolamento social rígido em menos de um ano. Para que se faça cumprir as determinações impostas pelos governos, as forças de segurança têm de incorporar mais uma atividade ao seu cotidiano de policiamento ostensivo. Não há possibilidade de coibir o descumprimento dos decretos por meio do teletrabalho. A exposição é inevitável e o risco de contágio só diminui com a adoção de medidas sanitárias, como higienização dos veículos e uso de equipamentos de proteção individual (EPIs). Os relatos que chegam, contudo, são de que muitas vezes os agentes precisam arcar com sua própria proteção, haja vista não haver disponibilização de itens básicos, como máscaras adequadas.
Diante desse cenário, caberia aos “porta-vozes” da categoria cobrar por vacina e por melhores condições de trabalho, cujas responsabilidades são compartilhadas entre os governos Federal e Estadual, respectivamente. O que vimos até o momento, contudo, é uma narrativa que flerta com a fantasia e a paranoia. De início, a gravidade da doença foi minimizada: seria apenas uma gripe, letal somente para quem não tivesse resistência física.
Em seguida, as medidas de isolamento social foram atacadas, como se houvesse contradição entre a preservação da economia e da vida humana. Não resta dúvidas de que dezenas de milhares de pessoas poderiam estar vivas se essas ações fossem cumpridas à risca. Negar essa realidade é agir de má-fé. Não há mais espaço para ignorância ou cegueira seletiva.
Por fim, as vacinas foram questionadas unicamente por sua origem, como se a pesquisa científica feita na China, na Rússia ou na Inglaterra não se guiasse pelos mesmos princípios. Quantas vidas foram perdidas nessa indefinição? As cobranças para o envio das doses passaram ao largo de afrontar o Governo Federal, como se esse ente federativo nada tivesse a ver com a defesa da vida de seus próprios habitantes. Em compensação, os governos estaduais foram alvejados com uma virulência impressionante, sendo responsabilizados até mesmo por ações fora de sua esfera de competência. O discurso do ódio emergiu das redes e ganhou contornos de ameaças de morte contra prefeitos e governadores em todo o Brasil. A despeito das divergências no espectro político, quem não se indigna com essa situação e não se solidariza com as pessoas ameaçadas alimenta de forma indireta essa espiral de violência.
Para não arruinar a narrativa oficial criada em torno da pandemia, muitas entidades, políticos e líderes religiosos calam-se sobre o efeito devastador do Coronavírus nas forças de segurança. Saber o número exato de profissionais que morreram de Covid é uma tarefa árdua. Não há contabilização sistemática das vítimas, muito menos divulgação pública. As notas de pesar em redes sociais, quase em sua totalidade, são publicadas sem qualquer menção à doença. Evita-se a todo custo falar sobre as causas de tantos óbitos, embora todo mundo saiba o motivo.
Varrer para debaixo do tapete o que está acontecendo é menosprezar a dignidade dos profissionais e de seus familiares. No perfil do Instagram do Blog Escrivaninha, venho fazendo o registro dos nomes e das imagens dos agentes de segurança que perderam a vida em decorrência da Covid-19. É um trabalho duro, triste, mas que tem como objetivo preservar a memória. Um exemplo ilustrativo de como a História pode ser manipulada é o fato de o discurso ter mudado após a imposição científica da eficácia da vacina. Quem era contra agora posa de defensor sem esboçar qualquer autocrítica. Prova disso é a presença de críticos da “vachina” esperando, no aeroporto de Fortaleza, justamente… a chegada de milhares de doses da “vachina” em solo cearense.
A decisão do governador cearense Camilo Santana (PT) de incluir os profissionais da segurança na lista de prioridades da vacina é louvável (vale ressaltar que o mesmo esforço deve ser destinado aos profissionais da educação). O temor é que a categoria se contente com esse aceno e passe a acreditar que tudo o que poderia ter sido feito em relação à prevenção contra a Covid-19 foi feito. A cobrança precisa ser mantida e direcionada a quem é responsável de direito. Cumpre não desprezar a inteligência das pessoas. Embora a adesão a esse projeto de morte tenha se dado de forma efusiva, a força da realidade costuma se impor. Aos poucos, mas de forma constante, a verdade sobre a pandemia se torna mais nítida. E então, para muitas pessoas, está se tornando evidente que a lógica que regeu todo esse período é uma versão degenerada do slogan presidencial: “O ódio acima de tudo, a política acima de todos”.
** Ricardo Moura é jornalista e coordenador da Rede de Observatórios da Segurança no Ceará