Negacionismo na segurança pública: governo da Bahia culpa as drogas e paredões pela violência
Dudu Ribeiro*
A escolha de negar os fatos como estratégia de se desconectar deste e assim promover, incentivar, patrocinar medidas alheias ao que a realidade e a ciência nos demonstra, deve ser chamada de negacionismo. Trata-se de algo que podemos conferir em diferentes áreas e também na segurança pública, como no governo Rui Costa, na Bahia, em que a culpa da violência recai sob os paredões e as drogas.Os interesses por trás desta narrativa são diversos e trazê-los à luz, não só é necessário, como urgente, para combater essa escalada de uma forma de agir e pensar no mundo, que mais do que desinformar, mata.
Estes agentes se dedicam ao embate em polêmicas construídas através de falsas simetrias entre a argumentação científica e teorias conspiratórias infundadas, ou outras expressões até mais elaboradas, mas igualmente falsas. Ao serem confrontados, se expressam através de expressões vazias de sentido, ou genéricas demais, frases de efeito, e se conecta a preconceitos fortemente disseminados na sociedade, mas flagrantemente desmascarado pela ciência.
No Brasil, chegamos a marca de 600 mil pessoas mortas pela covid-19 e sabemos que uma grande parcela destas pessoas ainda estaria entre nós não fosse as atitudes negacionistas do governo federal – que ao mesmo tempo que negava os fatos apresentados pela ciência, criava um esquema de corrupção, tráfico de interesses e enriquecimento ilícito, com compra de vacinas, materiais hospitalares e até serviços funerários. O negacionismo é sim elemento importante desse emaranhado de sangue e dinheiro, e não importa se o agente realmente acredita naquela ideia, mas ele se aproveita dela para se beneficiar, chamados também de ‘’mercadores da dúvida’’. Isso fica nítido para qualquer pessoa que se dedique ao tema, exceto, claro, para os negacionistas.
Há no entanto, um incrível papel do negacionismo em outra área que ainda não vem sendo devidamente explorado como tema, mas que nas últimas décadas, vem sim sendo sistematicamente confrontado por inúmeras iniciativas, dentro e fora da academia, e que aqui nos propomos a contribuir: o negacionismo na área de segurança pública.
É nítido a escalada dos índices de violência na Bahia nos últimos anos, demonstrado por levantamentos feitos pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e pela Rede de Observatórios de Segurança. A Bahia hoje é o estado com o maior número de Chacinas, tem a polícia mais letal do Nordeste e a terceira mais letal do Brasil, é o estado mais arriscado do país para homens negros, no ano de 2020 registrou 70 casos de feminicídios e 80 tentativas de feminicídio/agressão física, número que deve ser maior, já que também acumula o maior número de registro de homicídios de mulheres no Brasil inteiro.
Em resposta a essas graves questões, o governo da Bahia mais uma vez resolveu apelar para o negacionismo. Quem circular pelo estado, verá o incrível investimento em recursos, para reforçar uma propaganda mentirosa e anticientífica de que a culpa pela violência no estado é “das drogas’’. Parte dessa atitude está expressa na frase de um dos outdoors: a droga é a maior responsável pelas mortes violentas na Bahia.
É bom sabermos que a Bahia é o estado que mais justifica suas operações policiais baseado na ideia falaciosa de “guerra às drogas” – cerca de 26% dos eventos monitorados pela Rede de Observatórios da Segurança. Nenhum dado monitorado até agora aponta para qualquer nível de eficiência dessa política, não apenas no estado como em todas as partes do mundo, sendo inclusive alvo de formulações e alterações de estratégias.
O processo de criminalização das drogas se desconecta na vida prática, do conhecimento científico, e do amplo conhecimento humano das substâncias e se relaciona com aplicação racializada dos entendimentos penais, e a produção de controles contra populações marginalizadas operada pelo direito penal e pelos mecanismos de segurança pública, e reforçada por outras esferas como nos casos dos veículos da grande mídia. É preciso ressaltar que não é, em último caso, os dispositivos contidos na lei de drogas apenas que estão criminalizando as pessoas, a partir da relação destas com o uso e/ou comércio de algo tornado ilícito. Há um conjunto de dispositivos criminalizatórios articulados que atingem pessoas, seus territórios, suas culturas, suas possibilidades de vida, e que estão conectados com instrumentos históricos de controle, vigilância e punição sobre determinadas populações.
Por outro lado, o governador “achou” que uma boa medida para a contenção da crise da segurança pública seria a criminalização das festas do tipo “paredão”. Não há qualquer evidência de que essa medida tenha qualquer efetividade, que não seja o reforço a criminalização das expressões artísticas e culturais de uma juventude negra que sofre com a ausência de políticas públicas de acesso a bens culturais da cidade. É bom reforçar que junto a criminalização da maconha em 1932 no Brasil havia também uma forte repressão na cena urbana das expressões artísticas do povo negro, como o samba, que era ao fim e ao cabo uma medida contra a própria presença deste corpo negro na paisagem da cidade.
E como última medida, o governo da Bahia resolveu quadruplicar a premiação de apreensão de armas para agentes da polícia. Para além de essa não ser de fato uma política de valorização da categoria, essa medida não tem nenhuma efetividade, e pode ocasionar a apreensão repetida dos mesmos armamentos caso não haja controle, em um estado que não tem política de controle de armamentos, e “acredita” que são as drogas que estão atirando nas pessoas.
O que precisa ser feito na segurança pública baiana é primeiro levar a sério a produção de dados, a ciência e atuação de setores diversos, não apenas as polícias, nas questões ligadas à segurança pública. O negacionismo na segurança pública é um dos maiores males que convivemos atualmente e é preciso enfrentá-lo. Segurança pública não se faz com bravatas e frases de efeito, mas com ciência, inteligência e decisão política pela prioridade da vida.
*Dudu Ribeiro é coordenador do Observatório da Segurança na Bahia.