Panóptico: reconhecimento facial renova velhas táticas racistas de encarceramento
Por Bruno Sousa*
O Brasil não é para amadores. Ao mesmo passo que deputados bolsonaristas viajam à China comunista para adquirir equipamentos de videomonitoramento, assistimos o estado da Bahia, que é comandado por um partido dito progressista, disparar em números de pessoas encarceradas com o uso de reconhecimento facial. Desde que a tecnologia foi implantada, 205 pessoas foram presas no país.
É importante ressaltar que essa discussão não deve se limitar aos extremos politicos de direita e esquerda que vivemos. No entanto, debatemos a fragilidade nos bancos de dados utilizados, a falha ao reconhecer pessoas negras, lobbys e interesses por parte de políticos e empresários. Para trazer luz a essas informações, que são de interesse público, foi criado o Panóptico – projeto do Centro de Estudos de Estudos e Cidadania (CESeC).
Países como China, Inglaterra e Estados Unidos utilizam reconhecimento facial há bastante tempo. No ano de 2018, com a ascensão do bolsonarismo, essa tecnologia aparece como “tendências” surgiram no campo da segurança pública no Brasil. Os testes aqui começaram no carnaval de 2019 e Marcos Vinicius de Jesus Neri, 19 anos, foi preso em um bloco na cidade de Salvador(BA), após ser reconhecido por uma das câmeras. Foram 184 pessoas presas com o uso de reconhecimento facial no Brasil durante o primeiro ano de uso – dessas, mais de 90% eram negras.
No Rio de Janeiro, a maioria das câmeras que fazem reconhecimento facial foram instaladas no bairro de Copacabana – o cartão postal da cidade. No segundo dia do uso, uma mulher foi presa ao ser identificada erroneamente pelo sistema que apontou mais de 70% de semelhança entre ela e Maria Leda, uma pessoa foragida da justiça. No entanto, a verdadeira criminosa estava presa desde 2015. As polícias militar e civil do Rio de Janeiro utilizaram um banco de dados desatualizado. Esse caso é emblemático porque expõe a falha da máquina de leitura biométrica facial e a irresponsabilidade por parte da secretaria de segurança pública.
No mesmo ano, o então ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, assinou a portaria nº793 que prevê o financiamento de projetos de reconhecimento facial com o uso de dinheiro do Fundo Nacional de Segurança Pública. Até o momento, o Panóptico mapeou mais de 80 propostas e convênios de estados e municípios com o MJSP e os valores destinados a esses projetos somam mais de R$50 milhões de reais.
Porém, a tendência da adoção do reconhecimento facial no campo da segurança pública é nacional. Ao menos 20 estados brasileiros já tiveram, têm ou estão em processo de licitação de projetos. A Bahia é o estado mais avançado no uso da tecnologia e também o que mais encarcera.
Um outro dado que mostra o crescimento da tecnologia por aqui é o número de vezes que o termo “reconhecimento facial” aparece nos documentos do Ministério da Justiça e Segurança Pública. Entre 2015 e 2018, o termo foi mencionado nos documentos 312 vezes, enquanto em 2019 foi mencionado 514 vezes e em 2020 foram 638 menções, mais que o dobro do intervalo entre 2015 e 2018.
Os países que adotaram o uso do reconhecimento facial tem voltado atrás e promovido banimentos e moratórias quanto ao seu uso tanto na segurança pública quanto em outras áreas da vida humana. O entendimento é que se trata de uma IA invasiva e que não traz garantias quanto à proteção dos dados coletados, bem como dos operadores das máquinas que podem utilizá-las para fins pessoais.
A Lei Geral de Proteção de Dados é recente e não contempla a parte penal. Não sabemos onde começa nem onde termina o poder dado às instituições de policia no uso do reconhecimento facial. O que vemos é que a tecnologia está renovando velhas táticas racistas de encarceramento e tirando das instituições de polícia o peso das abordagens, uma vez que o padrão não é mais definido pelo agente e sim pela máquina.
Não podemos esquecer que as máquinas são falhas e que carregam histórias, vícios e preconceitos de quem as opera. Máquinas programadas por humanos reproduzem táticas históricas de encarceramento.
Por conta disso, o Panóptico surgiu em, em 2018 e monitora a adoção da tecnologia de reconhecimento facial pelas instituições de segurança pública do Brasil. O projeto agora tem por foco os casos de adoção da tecnologia nos estados e municípios brasileiros. Além de revelar o papel de governos e empresas no financiamento e na oferta dessa tecnologia de videomonitoramento. Todos os dados utilizados pela pesquisa serão disponibilizados para o público geral. Além do monitoramento dos projetos, o Panóptico também tem por objetivo comunicar de maneira abrangente sobre os riscos do uso de reconhecimento facial e seus vieses para a população negra.
** Jornalista, coordenador de comunicação do Lab Jaca e pesquisador do Centro de Estudos de Estudos e Cidadania (CESeC).