Privacidade e vigilância em tempos de Covid-19
Por Ricardo Moura*
Não há dúvidas que a pandemia do Coronavírus provocará transformações drásticas no mundo em que vivemos. Se é cedo demais para avaliar com exatidão o que virá pela frente, podemos perceber alguns vislumbres do que nos espera na área da segurança pública a curtíssimo prazo. As políticas de prevenção trazem consigo o dilema irresolúvel entre o direito individual à privacidade e os limites da vigilância estatal sobre a população.
Na China, câmeras foram instaladas nas portas dos apartamentos de pessoas em quarentena a fim de garantir que elas não saíssem de casa. Drones nas ruas alertavam as pessoas a usar máscaras, enquanto aplicativos e códigos de barras monitoravam a saúde da população. A Coreia do Sul mobilizou transações de cartão de crédito, geolocalização de smartphones e até mesmo conversações entre usuários de celular com o objetivo de rastrear seus cidadãos.
Israel, por sua vez, valeu-se de informações pessoais coletadas anteriormente para monitorar os passos de quem estava infectado. Detalhe: essa base de dados havia sido construída sem o conhecimento e, por óbvio, o consentimento da população.
No Brasil, já há algumas medidas do gênero implementadas pelos governos dos estados ainda que em uma escala menor. Em São Paulo, o Sistema de Monitoramento Inteligente (SIMI) passou a funcionar desde a semana passada. As operadoras de telefonia celular fornecerão dados ao governo que poderá monitorar aglomerações e enviar mensagens de texto a quem descumprir o isolamento. “Reforce as medidas de higienização e fique em casa” é um dos recados do governo paulista enviados diretamente pelo celular.
No Ceará, o Núcleo de Videomonitoramento da Coordenadoria Integrada de Operações de Segurança (Ciops) apoia os órgãos de segurança na fiscalização sobre o surgimento de aglomerações. Quase 8 mil ocorrências de descumprimento ao Decreto Estadual N° 33.519 – que estabelece as diretrizes do isolamento social – foram registradas no Estado entre 20 de março e 5 de abril. Não foi preciso muita tecnologia, contudo, para poder constatar as cenas lamentáveis provocadas por uma multidão que se formou no mercado de peixes durante a Semana Santa. A resistência em cumprir recomendações mundiais de segurança e prevenção só mostra o quanto os recursos tecnológicos podem ser instrumentos valiosos, mas não são a panaceia em se tratando de uma política de gestão de vidas humanas.
A mobilidade também vem sendo monitorada por operadoras de telefonia móvel e aplicativos no Brasil. Por causa disso, é possível acompanhar o desempenho dos estados em relação à sua taxa de isolamento. Com 52,8%, o Ceará ocupa a terceira posição no ranking nacional. A empresa que realiza esse levantamento ressalta, no entanto, que dados sobre a identidade dos usuários não são coletados de modo involuntário pelo aplicativo. A ressalva é importante porque, em meio ao temor causado pela pandemia, cuidados mínimos com a privacidade e a segurança da informação costumam ser deixados de lado pelos próprios cidadãos.
Vale lembrar ainda que o uso de tais ferramentas não ocorre de forma isolada. A adoção de novas tecnologias de vigilância é tão parte dos pacotes governamentais quanto medidas como: decretos de estados de emergência, ampliação dos poderes do Executivo e criação de leis que restringem direitos constitucionais. Tudo em nome da saúde pública. A grande questão é se, mesmo após o fim da pandemia, tais dispositivos de vigilância individuais tão invasivos não se perpetuarão, visando a perspectiva de ameaças futuras.
A possibilidade de dispor de um banco de dados tão extenso e vasto, com atualização em tempo real, é uma tentação muito grande para que os governos não aproveitem essa oportunidade. O Governo do Ceará já dispõe de um serviço de big data (tecnologia de processamento e armazenamento de grandes conjuntos de dados), o “Odin”, com capacidade para concentrar dados de mais de 100 sistemas de informação utilizados pelos órgãos de segurança pública e de analisar e tratar milhões de dados em milésimos de segundos.
Pouco se fala do funcionamento desse sistema e, principalmente, sobre o modo como informações sensíveis da população são manuseadas. A emergência de uma pandemia certamente contribuirá para o aprofundamento da capacidade de análise desses bancos de dados.
É fundamental que o debate sobre privacidade e proteção de dados pessoais se estabeleça de forma permanente no Ceará. Cabe à sociedade civil assumir uma posição de protagonismo nessa discussão que, por enquanto, ocorre de forma bastante restrita. Governos vêm e vão, epidemias surgem e desaparecem, mas nossos direitos individuais precisam ser defendidos.
*Coluna publicada originalmente no jornal O Povo