Rio de Janeiro: letalidade policial alarmante não produz resultados
Por Anabela Paiva, Bruna Sotero, Marcos Vinicius de Araujo, Pablo Nunes, Pedro Paulo da Silva, Salvino Oliveira e Silvia Ramos*
Há basicamente dois modos de olhar para a segurança pública do Rio de Janeiro em 2019: dizer que nada mudou em relação às políticas anteriores (muita operação, pouca inteligência, muita violência policial), ou considerar que o pior das políticas de segurança experimentadas no passado do Rio se radicalizou. As duas visões são verdadeiras.
Há quem diga que não existem propriamente políticas de segurança no governo atual. Afinal, a Secretaria de Segurança foi extinta e o comando do setor está dividido entre as duas polícias, que não têm programas (caracterizados por análises, estratégias, metas, prevenção, campanhas, inteligência e planejamento), mas apenas políticas de polícia, baseadas em operações policiais voltadas à repressão da ponta da cadeia de comercialização do tráfico de drogas, sempre nas favelas e nos bairros pobres da região metropolitana.
Nunca a concepção de que a segurança pública equivale à guerra às drogas foi tão dominante no Rio de Janeiro como neste momento. Estamos presenciando uma escalada, em número e letalidade, de operações policiais que têm como alvo os jovens negros das favelas. As ações são combinadas com declarações revoltantes do governador que estimulam nos policiais condutas declaradamente violentas e letais. Os números são a prova. De janeiro a setembro, houve 1.402 mortes decorrentes de ação policial (aumento de 18,5% em comparação com o ano passado). Foram registradas ainda 34 chacinas policiais, ou operações com três ou mais mortos, que resultaram em 123 mortes múltiplas no primeiro semestre de 2019, representando um aumento de 750% comparado com 2013.
O Rio de Janeiro de 2019 é um estado onde as polícias, ao invés de seguirem a orientação “maior eficácia com a menor letalidade”, adotaram um modo de operação que pode ser descrito como “muita letalidade, independentemente da eficácia”. Observamos uma sucessão de operações baseadas na violência extrema, sem qualquer efeito no sentido de alterar o domínio de territórios pelo crime. Em 2019, as polícias foram responsáveis por 40% das mortes na cidade do Rio e 44% na região de Niterói. Se nada for mudado, chegaremos brevemente a um cenário em que mais da metade das mortes serão de autoria de policiais.
Essa situação alarmante é agravada pelo crescimento ostensivo de grupos paramilitares chamados “milicianos”, que disputam territórios com as facções do tráfico. Não temos ainda um mapa consistente que mostre a ampliação de territórios sob o controle das milícias no estado em comparação com o controle que havia no passado. Mas há indícios de que crescem as áreas novas do interior e da região metropolitana sob o comando de grupos paramilitares. Para a população desses locais, as disputas significam um cotidiano conflagrado, no qual os direitos mais básicos, como o de ir e vir, são violados.
As operações policiais são o principal indicador monitorado pelo Observatório da Segurança RJ. As comparações dos dados do ano corrente com o monitoramento realizado no ano passado de março a dezembro, durante a intervenção federal, são impressionantes. Em 2018, o estado assistiu a uma sequência de megaoperações, com efetivos que – segundo informações oficiais — combinavam milhares de soldados do Exército e agentes policiais, além de caminhões e tanques militares. Pois bem, mesmo assim, em 2019 verificamos um aumento de 36,7% das operações e 56% de letalidade.
Assim como em todos os estados do país, os dados oficiais mostram uma redução do número de homicídios no Rio: o indicador se reduziu em 22% no período de janeiro a agosto de 2018 e 2019. A diminuição desses homicídios se deve a diversos fatores, dos quais os mais relevantes são dinâmicas de disputas entre quadrilhas e acertos entre seus integrantes – pois é o crime organizado aquele que mais produz letalidade, ao disputar o controle de territórios e mercados.
Quando analisamos os dados área por área, a queda do número total de homicídios não se explica pelo aumento das mortes decorrentes de ações policiais, como insistem alguns. Um estudo do Ministério Público do Rio de Janeiro (Letalidade Policial no Rio de Janeiro em 10 pontos) demonstra que não há como estabelecer a relação entre os dois indicadores. O MPRJ também apontou que a polícia fluminense é a mais letal do Brasil, embora o Rio não esteja entre os dez estados mais violentos do país. Não temos como avaliar, no momento atual, o impacto dos desaparecidos, bem como a descoberta de cemitérios clandestinos em áreas de milícias, no conjunto dos fenômenos de letalidade.
Em relação aos crimes contra o patrimônio, observamos em 2019 a continuidade de uma tendência que se delineou em 2018: a redução de crimes que dependem de planejamento (roubos de cargas e roubos de veículos) e a manutenção em patamares altos de crimes de oportunidade (roubos de rua e roubos em coletivos).
Quando olhamos os indicadores da Rede de Observatórios nos cinco meses sob análise, verificamos que o RJ não se destaca apenas pelo número de operações policiais. O estado também apresenta elevada vitimização de agentes de estado (33 registros) e chacinas (23 das 34 mortes múltiplas registradas pela Rede ocorreram em solo fluminense). Esses eventos demonstram como os fenômenos relacionados ao direito à vida continuam a ser as questões mais fundamentais no campo da segurança no Rio de Janeiro de 2019.
*Pesquisadores e coordenadores do Observatorio da Segurança — Rio de Janeiro